2005/04/14

DAVID GRIMAL EM LISBOA

David Grimal, que é um dos expoentes interessantes do violino na actualidade, interpretou o concerto para violino e orquestra de Erich Korngold acompanhado por uma pateticamente mediana Orquestra Gulbenkian, dirigida por Daniel Nazareth. Do programa fez parte a abertura de Hänsel und Gretel de Engelbert Humperdinck e na segunda parte foi interpretada a terceira sinfonia de Robert Schumann. No final do concerto de quinta-feira, que repetiu sexta, conversámos com David Grimal.


Álvaro Teixeira: Há muitos anos escrevi num diário português que este concerto não passa de um pastiche ultra-romântico. Continuo a pensar exatamente o mesmo...

David Grimal: Eu penso que é uma música muito kitsch. É uma música muito hollywoodesca mas com as raizes vienesas. No parte central do segundo movimento há como uma recordação de Schoenberg. Mas tudo o resto está no modo de fá que será posteriormente, depois Korngold porque foi ele quem começou a escrever no modo de fá, vulgarizado. Agora temos John Williams e outros que escrevem nesse modo, o que é completamente kitsch.

AT: Mas mesmo essa melodia do segundo movimento está muito mas construída. Na minha opinião. Depois existem fortes dissonâncias absolutamente desintegradas do contexto, do discurso musical.

DG: Isso não sei. É bastante naif sobretudo, a melodia do segundo movimento. Eu penso que dentro do género que esta obra representa está é bastante conseguida. Mas... não podemos dizer que é música séria.

AT: Você que acabou de tocar uma peça muito interessante (um extra de Bela Bartók) pouque é que toca uma peça nula como este concerto de Korngold?

(muitos risos)

DG: Nem sempre escolhemos com quem e o que vamos tocar...
Mas isto faz parte da música também. Eu toco muito o concerto de Beethoven, o de Brahms, o de Bartók, o de Berg, ou os de Mozart mas também toco Paganini e Korngold que também fazem parte da vida. Pode-se ter um prazer diferente tocando-os e escutando-os. São coisas diferentes que existem e que eu acho que merecem ser tocadas.

AT: O problema é que para vocês violinistas não há muito repertório... Contráriamente ao piano por exemplo.

DG: Não é verdade. Eu tenho cinquenta peças no repertório e tenho de estudar mais cinquenta. É um repertório enorme. Não sei se toda a minha vida será suficiente para tocar todo o repertório. Pode-se tocar Pendereki, Lutoslawski, Britten, não sei que mais... o concerto de Schoenberg, toda a música francesa, os concertos menos conhecidos de Miklos Rosa...

AT: Rosa?

DG: Rosa é um húngaro que foi para hollywood também. Há muito para tocar e a descobrir. Mas grandes obras? Concertos de Beethoven há só um. Não existem cinco. De Mozart não existem trinta. De Brahms não há dois, não contando com o duplo concerto. Mas há também um concerto de Schumann, um de Elgar, dois concertos de Prokovief, dois concertos de Chostakovitch...

AT: Ao nível da música contemporânea existem muitas obras para violino solo?

DG: Não existem assim tantas. Há muito mais para violoncelo solo, de facto. No século vinte o violoncelo conseguiu um grande destaque porque pessoas como Rostropovitch fizeram muito trabalho com os compositores e os violinistas foram mais preguiçosos. De tal maneira que se para o violoncelo existem muitas obras, para o violino de facto não existe uma verdadeira sucessão para a sonata de Bartók. Eu procurei... Há uma sonata de Zimmermann que no meu entender não tem a mesma qualidade.

AT: Não conheço essa obra mas Zimmermann é um grande compositor.

DG: É um grande compositor mas essa peça para violino não está, na minha opinião, ao nível da sonata de Bartók. Falei de Zimmermann justamente porque é um grande compositor. Trabalhei com muitos compositores que escreveram...

AT: Pascal Dusapin não tem nada para violino sólo?

(silêncio)

AT: Não gosta de Dusapin...

DG: Não sei. Não conheço tudo de Dusapin. Ele escreveu uma pequena peça para violoncelo mas que não é uma coisa séria... Mas isso depende se falamos de coisas sérias ou se falamos de tudo. Fomos muito severos com Kornagold mas na música contemporânea há muito "Korngold" também. E estão vivos!

AT: Bom... eu conheço bem a obra de Dusapin e em meu entender é um muito grande compositor. Mas não conheço essa peça para violoncelo. Mas qual é para você o limite entre a música séria e a não séria?

DG: Para mim não é uma boa pergunta porque não existe música séria e música não séria. Existe sim a maneira séria de abordar a música ou a maneira não séria de o fazer. A maneira não séria não me interessa. Daí que mesmo a música de Korngold para mim também pode ser séria nos limites do "décor" e do seu enquadramento. Mas pode ser trabalha com seriedade também. É isto.

AT: Mas assim temos limites demasiado volúveis... Podemos dizer que o último andamento do concerto de Korngold é absolutamente kitsch. Estivemos de acordo: não é música séria. Não podemos dizer agora, passados poucos minutos, que afinal é música séria.

DG: Mas não é isso. O que pode ser sério é a maneira de a interpretar.

AT: A sua forma de a tocar.

DG: Exatamente. Eu não sou compositor. Não sou compositor, nem crítico, nem professor de reflexão estética. Eu sou simplesmente um intérprete. Quer dizer que devo tocar toda a música. A minha missão é tocar tudo. Mas cada coisa que abordo, abordo-a de acordo com o seu carácter, de acordo com o seu contexto mas com o respeito pelo trabalho do compositor que eu de todas as maneiras não sou capaz de fazer. Depois há a música que eu recuso tocar porque é desonesta. Mas para mim Korngold não é uma música desonesta. É uma música sincera. Kitsch mas sincera.

AT: Pode-me dar um exemplo de música desonesta?

DG: Música desonesta... Sim, vou-lhe dar um exemplo de música desonesta... Existem obras sim... Mas não vou falar delas diante de um microfone. Em frente de uma garrafa de vinho podemos discutir sobre música. Existem mesmo compositores muito respeitáveis e muito sérios... Em Chostakovitch, por exemplo, existem obras desonestas. Para mim. Ele tem obras extraordinárias mas também tem obras em que ele não é sincero. Eu sei que foi por causa do sistema que ele foi obrigado a escrever obras um pouco de propaganda.

AT: São casos particulares...

DG: São casos particulares eu sei mas há obras em Beethoven que são peças de circustância e mal conseguidas. Ele próprio viu isso. Podemos encontrar muitos situações entre os maioires que escreveram música porque foram obrigados. Daí que essa música não funciona. E podemos ao mesmo tempo ver em compositores menores como Korngold, que era no entanto um compositor dotado mas que começou a fazer merdas como este concerto, mas ele fez isto com humor. Daí que eu aceito isto. Eu prefiro isto, onde há apesar de tudo talento, a coisas mais escolares como a Sinfonia Espanhola de Lallo que é mais estúpida. Bem mais estúpida. Há obras de Saint-Sains que também são mais estúpidas.

AT: ...

DG: O Rondó-Caprichoso foi conseguido como peça de circunstância. Não é música séria mas foi bem concebido. Mas o primeiro concerto não o foi.

AT: Você vive em França ou no Estados Unidos?

DG: Eu vivo em Paris!

AT: Como começou a falar inglês... É que existem alguns músicos franceses que foram para os Eua... A Hélène Grimaud foi viver para lá...

DG: É verdade?!

AT: Sim, é. Porque acha que ela foi para lá?

DG: Não sei. Temos de lhe perguntar.

(muitos risos)

AT: Que tem a dizer da música francesa post-Boulez? Crê que agora há mais liberdade estética que quando Boulez controlava tudo?

DG: Não se pode dizer que estamos no post-Boulez porque Boulez é ainda o papa. Mas há bastantes correntes estéticas em França e a linguagem está em vias de se re-definir, já não há uma linguagem homogénea. É muito dificil saber, quando não há continuidade histórica do ponto de vista da linguagem, o que tem valor ou não. É dificil dizer o que é experimental e o que vai ficar porque é uma linguagem que vai ter continuidade. A actualidade, para mim, é um periodo de transição onde se vai encontrar uma continuidade histórica com o passado, seja com a música tonal seja com a música modal , seja com outros caminhos expressivos que em meu entender estão ou na modalidade ou na tonalidade porque em meu entender a música serial ficará sempre em estado experimental.

AT: Você crê que todo o post-serialismo, todas as técnicas de triagem serializadas ficarão sempre em estado experimental?

DG: Penso que a música serial não funciona nas grandes formas. Funciona para as pequenas formas como em Webern. E Berg é música tonal não é música serial. Daí que funciona muito bem, efectivamente. A música serial é muito interessante mas não funciona. Como a Ars Subtilior do XIII século que era a música contrapuntística pura, isto não funciona. Os monges faziam vinte e quatro cânones ao mesmo tempo... isto não funciona. A música tem necessidade de um centro. Isto é muito interessante no papel mas não funciona. Na música serial é o mesmo. Há muitos acontecimentos ao mesmo tempo sem uma continuidade orgânica e uma correlação de tensão e distensão. E a música é isso. A música modal está menos neste registo de tensão/distensão mas é muito descritiva através das colorações. Para mim a linguagem serial na forma da música clássica não funciona.

AT: Muito obrigado.