Se o nosso mundo acabasse e se salvassem somente as sinfonias de Gustav Mahler, ficaria o melhor e mais genial que este mundo produziu. Ficariam, os futuros habitantes do mundo, caso os haja, com uma ideia errada da nossa realidade, onde o registo do sublime é demasiado pontual.
Entre as geniais sinfonias deste compositor, um judeu autríaco, a segunda, é uma obra imensa, impressionante, grandiosa, um dos lugares onde conceitos como "belo" e "sublime" ganham materialidade e se dotam de um paradigma, paradigma esse que lhes possibilita serem conceitos dotados de sentido.
Existem muitas interpretações grandiosas desta sinfonia. Desde aqueles que trabalharam directamente com o compositor a outros que conseguem oferecer-nos uma leitura significativa da obra. Tal origina a que seja tarefa fácil referir alguns nomes e registos importantes, sem termos de pensar muito. Mas quando num concerto ao vivo se juntam o impacto de uma obra desta natureza com uma leitura excepcional feita por artistas que, pelo seu talento e sensibilidade, constroem a história, nessas alturas, raras, temos o contacto directo com aquilo que abstractamente designamos por "sublime", referindo-nos, sempre num registo abstracto, a algo de muito excepcional e absolutamente transcendente dos melhores lugares comuns.
A Berliner Philharmoniker*, conduzida por Simon Rattle, com Magdalena Kozena e Soile Isokoski, respectivamente mezzo-soprano e soprano, e com o Niederläandischer Rundfunkchor, ofereceram-nos um desses raros momentos que ao longo de toda uma vida se tornam momentos paradigmáticos, que nos permitem o acesso directo ao transcendente e ao sublime e que dispensam qualquer discurso ou análise posterior, porque eles são "o paradigma", ou um dos paradigmas, com os quais tudo o resto é confrontado, numa relação de "modelo" ao "original". Rattle é uma das referências de sempre na interpretação das sinfonias de Mahler. Pode ser comparado com leituras diferentes de outros, poucos, geniais mahlerianos, numa confrontação de paradigmas interpretativos diferentes. Nada mais nada menos que isto. Kozena é das vozes mais musicais e mais belas de todos os tempos. Isokoski é igualmente uma grande artista dotada de uma sensibilidade rara. O Niederläandischer Runfunkchor, na sua primeira entrada, etérea e sustida, provocou as lágrimas em grande parte dos ouvintes: foi um "momento exemplar", um "il tempore". A Berliner Philharmoniker ofereceu-nos o que dela se esperava: a perfeição técnica, um "grande som" e uma elevada capacidade expressiva. Tudo isto servido pela espectacular acústica da Philharmonie. AST
* este concerto fez parte de musikfest berlin06. A segunda sinfonia de Mahler foi precedida por Stele de György Kurtág, uma obra muito interessante de 1994, numa leitura magnífica de Rattle à frente da Berliner Philharmoniker.