2006/11/24

RESSURREIÇÃO

Novamente a genial segunda sinfonia do grande Gustav Mahler, composta entre 1888 e 1894, revista em 1903 (em 1910 Mahler fez algumas alterações manuscritas na partitura), conduzida por Kazushi Ono* - utilizando a revisão de 1903 - à cabeça dos côros e da Orchestre Symphonique de la Monnaie (Bélgica), sendo solistas nas vozes a soprano Susan Chilcott e a contralto Violeta Urmana. Um "live" de 2002, colocado nas lojas pela etiqueta "apex" da WarnerClassics por pouco mais de cinco euros.

É verdade que as cordas deste agrupamento não são as da Berliner ou da Wiener Philharmoniker, mas a força que Ono consegue extrair da orquestra, fundada na superior qualidade e inspiração dos metais, na eficácia das madeiras, na potência e precisão das percussões e, evidentemente, nas cordas que sustentam consistentemente a excelência dos outros naipes, faz deste registo mais um exemplo de uma interpretação com o(s) sentido(s) dirigido(s) para e pelo sublime, que é a essência desta música.

No texto que acompanha os dois cd's vem um excerto de uma carta de Mahler ao crítico Marschalk na qual o compositor faz um curto esboço da estrutura da obra mas o texto já tinha explicado que foi no funeral do pianista e conductor Hans von Bülow, amigo do compositor, que a ideia de criar uma sinfonia com côro adquire consistência. A entrada do côro, na quarta parte** do quinto movimento, é um dos momentos mais sublimes da história da música. Já ouvi melhor, mas os côros de La Monnaie conseguem garantir o "coeficiente" indispensável para manter a interpretação dentro de um registo determinado pelo belo que transcende absolutamente o lugar da "normalidade". Na parte final do quinto movimento, Violeta Urmana dá continuidade ao impulso temático apresentado pelo corne inglês com a flauta na primeira parte, mais adiante apresentado pelo trombone e aqui retomado pela voz com o corne inglês***, que conduz ao remate final - fundado sobre o tema que simboliza a "ressurreição", que nos é re-exposto pelas vozes masculinas e já tinha sido anunciado pelo coral de metais (a sua primeira enunciação aconteceu pouco depois da abertura, quadro sonoro que foi re-pescado do 3º movimento, enunciação feita pela trompa havendo depois desenvolvimentos com base neste enunciado ao longo de todo o movimento), re-aparecendo com a sua máxima elevação espiritual na primeira apresentação do côro - remate este que é uma das conclusões mais grandiosas e inspiradas de toda a criação artística. AST

* o que tem esta interpretação de genial? 1)o conceito global de tempo e os tempos adoptados 2)a luminosa transparência com que nos são oferecidos os vários quadros sonoros 3)o trabalho temático que é suportado por um conceito global da obra cujo fundamento está em um e que condiciona dois.

** as "partes" a que me refiro são as faixas em que neste cd o movimento é dividido. Noutros registos o movimento aparece numa só faixa e noutros, muito poucos, num maior número de divisões. Estas divisões normalmente correspondem à mudança de "quadro sonoro".

*** não é do meu interesse fazer uma análise deste movimento que para mim é o apogeu da criação orquestral. Este tema, genialmente simples, pode ser analisado como um retardo repetido de meio tom sobre a dominante (a frase descendente que surge como "necessidade" deste retardo resolve na tónica da tonalidade onde nos encontramos que de seguida é submetida a uma modulação ascendente que aumenta a tensão dramática). Tão simples e com um efeito tão grande que só encontro paralelo na simplicidade das quatro notas, três repetidas, sobre as quais Beethoven construiu toda uma sinfonia. Neste caso o tema tem uma função dramática, não geminal, ao contrário do que se passa com as quatro notas de Beethoven. É preciso entender-se que a grande genialidade necessita de pouca racionalização, apesar de ser quem determina as grandes estruturas da racionalidade.






Convém que seja noite porque ele ri
e o seu riso é uma coisa insuportável,
uma feérica praia muito limpa
coberta de pancada e água escura.


Mário Cesariny de Vasconcelos
in Os Bantus e as Aves
citado em A Noite e o Riso
de Nuno Bragança


MÁRIO CESARINY DE VASCONCELOS
nasceu no dia 9 de Agosto de 1923, em Lisboa,
onde morreu no dia 26 de Novembro de 2006





Litvinenko morto pelos serviços secretos

Ex-expião russo do FSB. Em 2001 obteve asilo político no Reino Unido... in Metro-Portugal, 29 de Novembro de 2006, pag's 1, 8 e 9




2006/11/20

Mário Sottomayor Cardia (1941-2006)

Foi meu professor de axiologia e ética na universidade. Uma pessoa educada, serena, que alguns alunos tentaram denegrir, aproveitando uma época em que boa parte da imprensa portuguesa o apresentava como um indivíduo absurdo, uma espécie de palhaço, simplesmente porque se tinha disposto a disputar a presidência sem o apoio de partidos políticos e sem "máquina". Mas não será esse um direito de todos os cidadãos? Não estabeleceu Cardia um paradigma ao ter exercido, ou tentado, um direito dos cidadãos livres, consagrado na constituição portuguesa? Não deveria a imprensa ter tratado com mais respeito alguém que lutou contra a(s) ditadura(s)?
Exatamente nesses tempos em que a imprensa tentava humilhar Sottomayor Cardia, uma "menina", que se considerava muito inteligente e "muito intelectual", escandalizada pelo professor lhe ter atribuído "onze", na escala de zero a vinte, conseguiu arrastar outros alunos num abaixo assinado onde propunham o afastamento da pessoa e professor honesto que sempre foi Sottomayor Cardia. Uns "meninos" que face a outros docentes, mais protegidos ou "poderosos", dos quais todos, ou quase, tinham algo a reclamar, não ousavam sequer apontar o dedo ou levantar a voz. Reclamavam e muito! Em privado e sem nunca desencadearem qualquer procedimento público. Talvez porque existe a ideia que os professores universitários portugueses, depois de passarem a agregados e associados, fazem o que querem, e a avaliação do seu desempenho é um bluff. E que os catedráticos, em Portugal, materializam uma espécie de "sabedoria última" mas, também se sabe muito bem, que muitos não mantiveram os seus conhecimentos "em dia", possuindo uma "sabedoria última"... congelada!* Voltando a Cardia, os alunos aproveitaram-se do desgaste público que ele estava a sofrer para o atacarem. Atitude que revela uma "má humanidade".

Sottomayor Cardia foi uma pessoa boa, um professor discreto, que passei a admirar quando me contaram que foi torturado pela "pide", a polícia fascista, e que manteve uma postura "heróica". Lembro-me que no trabalho que fiz para a disciplina que ele ensinava equacionei partes da Crítica da Razão Prática. Já passaram muitos anos. No entanto recordo-me das sugestões inteligentes que, com uma simplicidade impressionante, Sottomayor Cardia me fez. Não sou católico, mas "paz à sua alma". Ele merece-a bem. AST

* embora as situações abaixo referidas supostamente não aconteçam na universidade pública onde Cardia foi professor, deve ser dito que a actual lei portuguesa da autonomia das universidades, que investe os reitores do poder de reconhecerem diplomas emitidos por instituições estrangeiras, passando a ser válidos dentro da universidade respectiva, abre a porta para o reconhecimento de "diplomas de doutoramento" comprados a obscuras "universidades" privadas, que existem nomeadamente nos Eua, permitindo a qualquer "esperto" que "adquira" um "doutoramento" desses, no caso de um reitor o reconhecer, poder ser professor (ou investigador...) na universidade do reitor que o aceitou. Também os diplomas de doutor emitidos pelas universidades espanholas, que não têm qualquer validade em Espanha porque os diplomas que valem são emitidos centralmente e assinados pela/o ministra/o que tutela as universidades e pelo rei, passam a ser "válidos" em Portugal se um reitor os reconhecer para exercício na "sua" universidade (desrespeitando, se tal acontecer, o que foi assinado em Bolonha onde consta que todo o diploma que não tenha valor no país de origem não tem validade no espaço comunitário europeu). Não só é paradoxal, como permite a disseminação da mediocridade e dos "empregos para os amigos", a lei que actualmente regula a autonomia das universidades portuguesas!














2006/11/05

SEMPRE INTERPRETEI MÚSICA CONTEMPORÂNEA

Se nos pedissem para indicar um nome significativo da interpretação do periodo clássico, a probabilidade desse nome ser Christopher Hogwood seria muito elevada. O histórico músico veio a Portugal, ao Porto, à Casa da Música, dirigir a Orquestra de Câmera de Basel, num programa com obras de Prokofiev e uma sinfonia de Haydn. Foi aí que, durante o intervalo do concerto, conversamos com ele.

Álvaro Teixeira Lembra-se da integral das sinfonias de Mozart que gravou há muitos anos atrás?

Christopher Hogwood Foi a primeira integral com instrumentos da época e foi muito completa. Gravamos as diferentes versões que existem dos movimentos de algumas sinfonias. As pessoas ficaram surpreendidas.

AT Neste concerto conduz Prokofiev. Porquê Prokofiev e Haydn?

CH Porque Prokofiev gostava muito de Haydn e uma sinfonia clássica de Haydn é uma muito boa combinação. Eu gosto de misturar obras clássicas com obras do século vinte. Eu faço muitos programas misturando clássicos e antigos com obras neo-clássicas. Haydn e Prokofiev, Haydn e Stravinsky, Haendel e Hindemith, Telemann e Martinu, e outras combinações.

AT Nunca interpretou música contemporânea? Só neo-clássicos como aqueles?

CH Eu já dirigi estreias mundiais de obras contemporâneas. Por exemplo de John Woolrich. Mas também dirigi obras de Schnittke, Ligetti, Pendereki...

AT Alguns directores começaram pela música antiga e depois foram avançando até aos contemporâneos. Muito poucos. A maioria fica nos românticos...

CH Quando era estudante toquei muita música contemporânea. Por isso para mim não é novo interpretar repertório contemporâneo. Actualmente eu faço poucos concertos utilizando instrumentos históricos.

AT Porquê?

CH Não há muitas orquestras que utilizem instrumentos históricos e grande parte das que utilizam não necessitam de conductor.

AT Mas dirigiu as sinfonias de Mozart...

CH A partir do cravo...

AT É verdade! E Jaap Schroder era o primeiro-violino.

CH Exatamente.

AT Dirige regularmente esta orquestra (Kammerorchestra Basel)?

CH Sim. Em trabalhos que também incluem registos. Já gravamos cerca de seis cd's.

AT Vive no Reino Unido?

CH Sim. Sou professor em Cambridge e aí vivo.

AT A Academy of Ancient Music continua a existir?

CH Sim, claro. Agora mesmo estão a tocar na Holanda, se não estou em erro. Tocam muito. Mas eu já não faço parte.

AT Mas não é o director-artístico?!

CH Não. O novo director é Richard Egarr.

AT O cravista?!

CH Sim. É o novo director desde Setembro.

AT Antes era Manze, Andrew Manze, violinista, mas o nome do Christopher Hogwood aparecia sempre como o director-artístico.

CH Fui director quando Manze era o konzertmeister. Agora Richard Egarr é o novo director.

AT Isto é novidade para mim... Bem... Dirige orquestras sinfónicas?

CH Sim. E também dirijo frequentemente óperas. Em Paris, no Scalla...

AT Que ópera fez no Scalla?

CH Dido e Eneas, de Purcel.

AT Mas isso é música antiga. Modernas, fez alguma?

CH O Rake's Progress de Stravinsky. Também trabalho regularmente com o Tonhalle de Zurich.

AT O que pensa da actual situação musical na Europa?

CH Para responder a essa questão seria necessária uma semana, mas suponho que cada país necessita de mais suportes financeiros. Por todo o lado existem problemas relacionados com isto. Em muitos países existem problemas com o ensino da música. Não sei qual é a situação em Portugal... Em Espanha é mau. Em Itália não é melhor... Ensinar bem ás crianças sai caro mas é necessário.

AT Mas no Reino Unido o governo não dá muito dinheiro para as orquestras. São mais os sponsors... E parece funcionar bem...

CH Cada orquestra gasta grande parte do seu tempo a arranjar sponsors. Tempo que deveria ser melhor aproveitado. É uma pena... Depois as pessoas não sabem o que isso significa. Pensam que são os sponsors que devem escolher os programas, coisa que não pode acontecer nunca. Os sponsors têm de ouvir a música que os artistas desejam tocar. Ser sponsor não significa poder escolher o programa. A orientação de uma orquestra não pode ser mudada pelo desejo dos sponsors.

AT Mas, por exemplo, se olharmos para as orquestras francesas... O estado dá-lhes muito dinheiro e elas continuam menos boas que aquilo que se esperaria...

(risos)

CH Mas o governo britânico também dá muito dinheiro ás óperas. Para suportar uma casa de ópera é necessários muito dinheiro e em Londres são duas casas de ópera. Londres tem cinco orquestras sinfónicas. É muito para uma cidade! Em França é diferente porque é um grande país e as orquestras estão melhor distribuídas.

AT Em Londres as óperas estão sempre cheias...

CH Estão cheias mas continuam a necessitar de sponsors! As pessoas não fazem ideia do dinheiro que é necessário para fazer funcionar uma casa de ópera. Não imaginam que o bilhete que compram não paga os custos.

AT Deve-se continuar a gastar dinheiro com a ópera?

CH Sim. Eu gosto de dirigir óperas. Há óperas modernas muito boas. Por vezes são produções estranhas mas cheias de imaginação. A produção de opera contemporânea está muito activa. Assim como a dança. Os jovens gostam e vão muito frequentemente. A ópera é mais popular entre o jovens que a música sinfónica.

AT Não é uma pena que nesta casa não se possa encenar uma ópera?

CH Não há uma ópera em Portugal?

AT Sim... Mas nesta casa onde estamos agora não é possível encenar óperas. Não há nem lugar para a orquestra nem espaço para a cena. Não é uma pena?

CH Mas há uma casa de ópera em Portugal ou não?

AT Há, mas no Porto não.

CH No Porto não há uma casa de ópera?

AT Não.

CH Eu concordo! Deveria haver uma casa de ópera no Porto. Aí está um novo projecto.

(risos)

AT Eu creio que a segunda parte do concerto está prestes a começar e eu vou terminar a nossa entrevista dizendo-lhe que foi um grande prazer conversar com uma figura tão relevante para a música e a arte como o Christopher Hogwood. E espero que volte brevemente aqui, à Casa da Música.

CH Aqui existe uma boa orquestra sinfónica, suponho.

AT Sim. A Orquestra Nacional do Porto. É a melhor orquestra portuguesa.

CH Em algumas revistas li as programações dessa orquestra e acho que têm uma visão muito inteligente. Se vir os responsáveis diga-lhes que gostaria de desenvolver alguns trabalhos com a orquestra.

AT Eles irão ler esta entrevista. Suponho que todos se irão sentir honrados e contentes com a vontade do Christopher Hogwood em desenvolver projectos com a ONP. Por isso espero encontrá-lo brevemente de novo aqui.