Acha uma ideia bizarra?
E se fôr com uma encenção fabulosa, uma orquestra de grande nível, uns intérpretes com grande voz e teatralidade, acompanhados por um côro de excepção? Continuará a achar o mesmo?
A produção do Rigoletto de Giuseppe Verdi, levada a cabo pela English National Opera (ENO), à qual que pûde assitir na noite de sábado, dia 18 de Março, foi tudo menos banal.
Logo na abertura, a orquestra, dirigida Phillip Thomas, ofereceu-nos uma introdução de estarrecer, dando o mote para uma interpretação marcada pelo tragédia que teve o apogeu com o assassinato de Gilda. Há que dizer que a encenação, originalmente criada por Jonathan Miller, aqui re-creada por Elaine Tyler-Hall, remetendo-nos para o mundo da máfia dos anos 50, reforçou (e de que maneira!) todo o clima de insanidade que esta ópera do genial Giuseppe (que trabalhou sobre um texto de Francesco Maria Piave a partir do romance Le roi s'amuse de Victor Hugo) nos dá. Um clima de insanidade que esta encenação demonstra ser transversal a uma determinada e vulgarizada "condição humana". Transpôr o texto de Piave para os anos 50, substituindo os personagens que rodeavam o duque italiano por mafiosos, teve muito mais eficácia que as encenações convencionais, porque nos transmite "mais realidade". As encenações tradicionais remetem-nos para uma história que nos surge longínqua e desprovida de actualidade. Esta encenação remete-nos para o nosso mundo recente e faz-nos pensar nas formas súbteis que os mafiosos de todas as ordens, nuns paises mais que noutros, adoptam para contornar leis, chantagear ou tentar anular social, política e culturalmente quem se torna incómodo e, sobretudo, manter intocáveis os seus inenarráveis privilégios. Na verdade, comparando com uma interessante encenação de "Cosi" de W.A. Mozart que trabalhava o mesmo conceito de emprestar à encenação um maior grau de actualidade, remetendo-nos, naquele caso, para os anos 70, encenação que pûde assistir na Staatsoper Unter den Linden já lá vão vários anos, considero que o trabalho deste conceito, foi, neste Rigolleto posto em cena pela ENO, mais eficaz e potênciou substancialmente mais o texto do libreto que, sem qualquer dúvida, oferece-se bem para este género de tratamento. No que toca à encenação ficarei por aqui. Para não entrarmos no campo das ilações de carácter ético-filosófico (mas sobretudo psicanalista se quisermos ir ao "fundamento"), à volta da "sede de poder" e da absoluta tangencialidade do mesmo...
O côro da ENO revelou uma excelência que me surpreendeu. Apesar de ser bem conhecida a tradição dos ingleses na música coral, a elevada prestação que o côro da ENO atingiu nesta produção superou francamente as minhas melhores expectativas, sendo mais um elemento fundamental para o grande nível de toda a performance.
Quanto aos solistas, antes de todos tivemos um fantástico Rigoletto, incarnado por um convincente Alan Opie, que nos deu toda a trágica dimensão deste personagem-símbolo, cuja sede de vingança, variante da sede de poder, o conduziu ao abismo. A sua voz timbrada de colorações sombrias foi o instrumento ideal para este desempenho.
O Duque foi interpretado por Peter Auty que, na pele de um mafioso esperto, desenrascado e pragmático, sempre de pente em riste a compôr o cabelo para mantêr a "imagem", dotado de uma voz clara, bem colocada e com grande projecção, nos remeteu à dimensão mais básica e elementar que a existência humana pode adquirir.
Judith Howarth, no papel de Gilda, sem ser especialmente marcante conseguiu ser minimamente eficaz revelando um nível razoável.
Scott Davies esteve muito bem como Borsa, o mesmo acontecendo com David Stephenson que foi Marullo, Hans-Peter Scheidegger que representou Monterone e Paul Reves no papel de Ceprano. Fiona Canfield, que representou a esposa de Ceprano, no seu curtíssimo desempenho esteve excelente. A versão em inglês foi de James Fenton. AST
ROMEO AND JULIET POR GENNADI ROZHDESTVENSKY
O grande chefe-de-orquestra russo veio mostrar-nos o que pode ser uma leitura assombrosa da obra que, repetidamente, tem sido (mal) tocada na ROH a acompanhar o famoso ballet que tem esgotado as bilheteiras. Por isso, nem por acaso, poucos dias passados depois de ouvirmos a orquestra da ROH a fazer uma asneirada de primeirissima ordem (sob batuta de um "maestro" do qual nem nos lembramos do nome), maltratando esta obra impressionante, veio o genial russo mostrar aos londrinos como verdadeiramente se toca o Romeu e Julieta do seu compatriota Sergei Prokofiev, dirigindo a Royal Philharmonic Orchestra.
Este genial chefe de orquestra, homem idoso que caminha a custo, homem cujas leituras das sinfonias de Shostakovich se tornaram paradigmas, com gestos minimais conseguiu elevar a RPO a estados de grandiosidade a que raramente assistimos. Claro, houve aquela oitava sinfonia de Mahler, inesquecivel, sob batuta do grande Sinnopoli. Que quando o fomos procurar a Dresden tinha falecido... Como consolo, muito a-posteriori, este Gennadi, inspirado, genial, modesto (dirigiu no mesmo patamar da orquestra, rejeitando subir ao estrado que o eleva face aos constituintes da mesma) e velhinho, veio oferecer-nos uma leitura do "ballet", uma integral, que supera tudo o que ouvimos em concerto e possuimos em discos. Se se trata de uma obra "programatica" pois que vivam as obras com programa, "descritivas"... Se dirigidas por maestros como Gennadi.
A RPO, com a sua sonoridade grandiosa e quente, com sete trompas espectaculares, com os metais dotados da maestria dos trompas, com naipes de madeiras perfeitos, timbaleiros artistas e cordas eloquentes (ainda que a sonoridade do naipe dos violoncelos necessite de um maior apuramento), com o fabuloso maestro russo a dirigir, conseguiu, nesta noite do dia 17, fazer algo de novo. De monumental. Esperemos que tenham feito um registo... Livios Pereyra
EXCERTOS DE ROMEU E JULIETA POR YURI SIMONOV
Enquanto esperamos ansiosamente que as edições The Royal Philarmonic Orchestra tenham a bondade de editar o registo do concerto "live" acima tratado, cujo preço rondará os 6 ou 7 euros por cd (a integral do ballet serão dois ou três cd's pois trata-se de uma obra que dura cerca de três horas), com a grande qualidade sonora a que estas edições nos habituaram, aproveito para sugerir a audição de excertos das suites que Prokofiev extraiu daquela obra, numa interpretação de outro grande chefe de orquestra russo à frente da mesma orquestra.
Com uma técnica de 32 bit, as edições da RPO oferecem-nos excertos das duas suites sob direcção de Yuri Simonov. No mesmo cd é-nos oferecida uma interpretação da sinfonia número um, que o compositor apelidou de "clássica", aqui dotada de uma interpretação que muito valoriza uma obra de interesse e escrita discutíveis. Também lá vem a Suite Sinfónica op 60, "Lieutenant Kijé", do mesmo Prokofiev, que é uma composição tão idiota que nem uma interpretação de nível superior, como esta, a consegue elevar do estado de idiotia.
Mas voltemos ao Romeu e Julieta. Logo de início, em Montagues and Capulets, Simonov extrai da orquestra um efeito sonoro impresssionante dando o mote para uma interpretação que me permito considerar "paradigmática". Da mesma maneira, no final, em Romeo at the Grave of Juliet, o maestro extrai da orquestra sonoridades magníficas dotadas de uma força imensa que desliza de maneira surpreendente para o silêncio-limite que a morte dos amantes impõe. O trabalho contrastante entre "cenas" absolutamente distintas é de uma inteligência rara, conseguindo dar-nos a ilusão de uma perfeita continuidade entre as ditas cenas, coisa que não acontece uma vez que são excertos escolhidos a partir das duas suites que são elas mesmas a "síntese" de uma obra de grande duração e grandes rasgos.
Evidentemente que Simonov contou com as sonoridades luxuoriantes desta orquestra fantástica que, nas mãos de maestros de excepção como ele e Gennadi Rozhdestvensky, é capaz de autênticos "monumentos" à genialidade que a "condição humana" também é capaz de produzir. Para além do resto... AST
EUGENE ONEGIN
A ópera de Pyotr II'yich Tchaikovsky, baseada na novela de Alexander Sergeyevich Pushkin, teve ontem, dia 16, mais uma récita, na ROH em Londres. Poder-se-ia tratar de mais uma entre muitas outras da presente temporada da ROH, mas de facto, temos de reconhecer, foi um acontecimento. Seria previsível. Com Amanda Roocroft no papel de Tatyana, Yvonne Howard no de Madame Larina, Nino Surguladze como Olga, Eric Halfvarson como Prince Gremin... Mas sobretudo, notem bem, com milagres da natureza como Rolando Villazon, no papel de Lensky, e Dmitri Hvorostovsky no de Onegin! As arias de Villazon foram momentos de suspense, de musicalidade, de talento. A leitura de Hvorostovsky um paradigma. Paradigma sem exagero.
Mas um acontecimento dificilmente seriam dois cantores, ainda que geniais, a abrirem a goela. Evidentemente que houve um maestro. Um maestro que dirigiu a quase totalidade da obra sem olhar para a partitura, um maestro que dava sinais ao virtuoso tenor para arrebatar a plateia com o seu timbre maravilhoso, ou para se conter num recato quase metafisico. Um maestro que extraiu da orquestra da ROH, que frequentemente tem performances irregulares, assunto que extravasa o tema que aqui estamos a tratar, o seu melhor. Timbres soprados, de arrepiar, nas cordas; metais limpidos, perfeitamente sob controle; madeiras ora quentes ora dilaceradas conforme os momentos; timbales e outros instrumentos do naipe, perfeitos. O grupo coral esteve fabuloso. Houve pequenos e muito pontuais desacertos mas coisa irrelevante. A batuta esteve sob o punho de um maestro excepcional: Philippe Jordan de seu nome. A cenografia foi convencional e mediocre mas pouco importa. Os figurinos, roupas da moda russa daquele tempo, tiveram algum interesse. Bravo Philippe! Bravo Villazon e Hvorostovsky! Bravo orquestra e coral! Livios Pereyra