2006/07/15

THE SWAN OF TUONELA

Quem diz não gostar de Sibelius deveria ouvir, com muita atenção, esta obra. Se à primeira escuta poderemos dizer que é notória e influência wagneriana, à segunda notaremos imediatamente que a singular linguagem de Sibelius está presente na sua intensidade mais marcante e inspirada. Em todos os grandes criadores poderemos escutar influências daqueles que os precederam mas todos os grandes são-o porque personalizaram essas influências criando um idioma próprio que lhes é inerente.

O interessante em Sibelius é que se trata de um criador que desenvolve genialmente o conceito de "poema sinfónico", que é uma criação de Liszt e não de Wagner. Portanto, se auditivamente poderemos, remotamente, escutar no início deste "poema sinfónico" uma suspensão da resolução harmónica idêntica à que se escuta no famoso "acorde de Tristão", de Wagner, aqui estamos nitidamente dentro de outro conceito que não necessita de se alicerçar em simbologias* para manter a consistência ao nível da estrutura musical, além de que a demora da resolução do acorde do início, que se reproduz ao longo da obra, remete-nos a Wagner só e unicamente pela correlação com o famoso acorde porque em termos de linguagem estamos também claramente dentro de uma outra semiologia. Notável é o facto de que esta peça se alimenta, do início ao fim, do propósito temático onde acontece o referido retardar da aludida resolução harmónica. Escusado será notar que Sibelius se movimenta dentro de uma linguagem tonal e funcional. Temos um fusionamento entre a temática e a estrutura da peça, o que é a garantia máxima de "consistência" da obra, consistência essa que se já não faz ninguém perder o sono continua a ser um aspecto fundamental a considerar quando se aprecia qualquer objecto de arte.

Evidentemente que na música o papel do "re-criador" é fundamental, daí a nossa insistência em comparar interpretações de vários grandes artistas, tendo em consideração que a designação "grandes" padece sempre de algum grau de subjectividade, mesmo nos casos em que existe um consenso aparentemente generalizado. Para a obra que tratamos poderei recomendar um cd que custa cerca de quatro ou cinco euros, das re-edições "classic" da Régis, em que a orquestra é a Sinfónica da Rádio Berlim e o director um inspirado Paavo Berglund, chefe-de-orquestra este que nos oferece um balanceamento e uma respiração absolutamente conseguidos que transformam este registo em algo de fundamental. Lá também vem, entre vários outras obras, nomeadamente a célebre "Finlândia", uma interpretação genial da "Valse Triste", que é uma pequena obra onde Sibelius nos demonstra como de um tema simples se faz algo memorável. AST

* Sibelius não utiliza as mitologias nórdicas como um aspecto estruturante, ao contrário do que acontece em Wagner onde os "leit-motivs" simbolizam personagens.
















GERTRUD

É o último filme de Carl T. Dreyer, estreado em Paris no ano de 1964. Evidentemente a preto e branco: a côr desviar-nos-ia do primordial. Seria uma excrescência, neste caso. O primordial é aqui um discurso, feito na base de longos planos sequência, sobre a impossibilidade do amor. Impossibilidade do "amor ideal". Como a expectativa do amor é sempre uma expectativa idealizante, já se vê a abrangência... Lacan trata de maneira fundamental esta problemática mas não iremos por aí. *

A arte compete com esse mesmo amor, vendo-se, retrospectivamente, Gertrud ser preterida, ou discursar que o foi, pela poesia, e na actualidade (do filme) pela música, ainda que o compositor nos apareça como uma espécie de libertino com pouco esforço e investimento criativo, situação que não acontece na "realidade do real". No entanto, pode-se dizer, a música que se escuta, na generalidade peças para piano, supostamente compostas pelo amante-compositor é, no mínimo, interessante. Já a incrível asneira, quando o compositor pergunta a Gertrud se pretende que lhe toque um "nocturno de Debussy", não é perdoável num filme onde o "enredo" gira na e com a música: Debussy não escreveu "nocturnos". Isto faz-nos lembrar qualquer coisa...

Este filme, que muitos dizem ser teatro filmado, sendo de facto uma adaptação de uma peça de teatro, é um trabalho deslumbrante onde Dreyer reduz ao máximo os planos, concentrando-se na(s) densidade(s) psicológica das personagens, que se revela nos e pelos seus discursos, e onde a câmara parece querer aproximar-se, pela deslocação, do seu psicologismo. Os intérpretes transmitem-nos uma espécie de distânciamento em relação ao seu próprio drama, sendo o poeta o único que materializa a comoção, ainda que, num registo narcísico, o marido de Gertrud também o faça. É também o poeta que nos coloca face à fugacidade da projecção na história quando Gertrud argumenta que ele conseguiu tudo o que desejava contrapondo-lhe, o poeta, que perdeu o essencial. São diálogos fundados no equívoco. Ao compositor Gertrud perguntou quando falariam o mesmo idioma, mas aí o equívoco era o amor dela. Gertrud que é representada por uma impressionante Nina Pens Rode. Ao poeta, com o espírito assente na realidade, na sua realidade, a protagonista faz notar que não se pode resuscitar aquilo que está morto e enterrado.

O final, não sendo feliz, é de tranquila aceitação. Aceitação do real, sendo o real exatamente a impossibilidade do amor, salvando-se a amizade daquele que nunca ultrapassou esse limiar. Este filme maior foi re-apresentado na Cinemateca Portuguesa, em Lisboa. AST


* Le Magazine Littéraire de Julho/Agosto trata exatamente o tema do desejo, sendo abordadas, nomeadamente, as teorias de Lacan. Nesse número encontra-se uma entrevista com Slavoj Zizek, filósofo com quem já tivemos uma conversa que se encontra resumida no blog psicanalises, onde também se encontra um artigo, traduzido para o espanhol, do mesmo Zizek.















Homenagem a Sílvio Joaquim F F Teixeira

Nasceu a 19 de Novembro de 1928... completou o Curso Comercial... com dispensa de prova oral a Aritemética Comercial e Geometria, com 17 valores. Seguiu para a função pública... tendo mais tarde pedido licença ilimitada... trabalhou com o pai no estabelecimento de ourivesaria, relojoaria e óptica... Foi co-fundador do jornal "A Região" do qual foi secretário-geral. Acabou por deixar o jornal "A Região" para mais tarde fundar o Jornal do Norte, em Dezembro de 1984. in A Voz de Trás-os-Montes, Vila Real - Portugal, 13 de Julho 2006

Sílvio Teixeira é um Vila-realense dos puros. Conheci-o antes da revolução de Abril. Envolvia-se em todas as nobres causas pela sua cidade e pelo seu concelho. Em 1970, durante o I Encontro para o desenvolvimento do distrito de Vila Real, fui proibido, de ler uma comunicação sobre turismo. Havia sido convidado e constava do programa... O auditório estava cheio de público... Apenas Sílvio Teixeira se aproximou de mim, animando-me a publicar, integralmente essa comunicação, antes que saísse o volume oficial... Barroso da Fonte in Jornal do Norte, Vila Real, 17 Julho de 2006















English Translation


2006/07/13

LES AMANTS RÉGULIERS

A Cinemateca Portuguesa apresentou, em ante-estreia portuguesa, o último filme de Philippe Garrel, cuja estreia absoluta aconteceu no Festival de Veneza, a 3 de Setembro de 2005.

Trata-se de uma longíssima metragem (183 minutos), a preto e branco, com uma narrativa plasmada onde o trabalho de claridades, sombras e penumbras, constitui, senão o essencial, pelo menos o pilar de uma narrativa onde o drama se esbate num fluir temporal que parece querer anula-lo. Se a narrativa nos situa no Maio de 68, em França, em que Godard, segundo a narrativa do próprio Garrel antes do filme nos ser apresentado, lhe deu 100.000 francos para que ele constituisse a "versão alternativa", não oficial, dos eventos de 68, a "versão alternativa", a "outra narrativa", parece ser, não a história de rua mas as histórias concomitantes à história na rua.

Sobretudo este filme lembra-nos que os finais não são felizes e mesmo que O Sono dos Justos, o fim, nos remeta, metaforicamente, para um final feliz, a metáfora reduz-se à poiesis que aquele sono incorpora ao submeter o amor ao teste da realidade que o fuzilou, como aos ideais. Se a banda sonora é mediocre e trivial, já o trabalho de sonoplastia se revestiu da poiesis da narrativa, tornando-se a sua quarta dimensão. Ou terceira, conforme se vejam as coisas... AST














2006/07/09

5 HEURES DU MATIN

Dia 8, no Teatro Nacional Dona Maria, em Lisboa, os Pigeons International Théatre-Dance, de Montreal, apresentaram a peça 5 Heures du Matin, concebida e dirigida por Paula de Vasconcelos e composta sobre um conjunto de fotografias de Serge Clément. No dia seguinte à apresentação conversamos com Paula de Vasconcelos.


Álvaro Teixeira: O espectáculo é falado em francês... Já o apresentou em França?

Paula de Vasconcelos: Não. Nunca me convidaram para apresentar em França.

AT: O facto de ser falado em francês não pode ser restrição? Para o público de língua inglesa, por exemplo?

PV: Não sei... Talvez não pois tenho apresentado muitos trabalhos nos Estados Unidos e no resto do Canadá que não fala francês.

AT: Qual o seu percurso em termos de dança?

PV: Não sou bailarina. Na universidade estudei teatro. O co-director da companhia foi bailariano clássico mas depois começou a interessar-se pelo teatro e abandonou a dança clássica.

AT: Portanto a opção pelo teatro-dança tem que ver com os seus estudos...

PV: No início a nossa companhia era uma companhia de teatro. Foi no final de 1997 que começamos a trabalhar com bailarinos.

AT: O facto de não ter desenvolvido estudos de dança não pode ser uma restrição?

PV: Lá em Montreal há muitos coreógrafos interessantes que nunca estudaram dança ou se estudaram não o fizeram formalmente. Alguns coreógrafos vêm do cinema, outros das "performance arts"... Percursos muito diferentes para resultados muito interessantes.

AT: Será que a dança permite maior expressividade que as outras artes?

PV: Felizmente no mundo das artes tudo é possivel. Pode haver um grande músico que sem ter estudado cria grandes composições... Quanto à dança não é muito fácil fazê-la sem estudar... É mais fácil fazer pintura sem ter estudado. Ou teatro. Ou literatura...

AT: A música também é muito técnica...

PV: É. Mas eu tenho uma sobrinha que faz composições extraordinárias que não têm nada que ver com a sua capacidade técnica actual...

AT: Qual é a sua relação com a Pina Baush?

PV: Tenho uma grande admiração por ela... Como no princípio éramos uma companhia de teatro nunca pensei entrar no campo dela. Acho-a tremenda e fantástica.

AT: No Canadá é no Quebec que se produz mais dança moderna?

PV: Em Montreal... Montreal é hoje para a América o que foi Paris no século XIX para a Europa. Lá trabalham muitos artistas com estilos diferentes. Todos muito bons. É uma cidade muito especial onde se produzem coisas muito diferentes, todas com muita qualidade e muito talento.

AT: Costumam trabalhar fora do Quebec?

PV: Sim. Também apresentamos na Europa e agora vamos à Colômbia.

AT: Como surgiu a ideia de mandar o fotógrafo dar a volta ao mundo?

PV: esta peça faz parte de uma triologia. A primeira chamava-se Babilónia. Era muito diferente que "Cinco Horas da Manhã". Eram muitos bailarinos e músicos em cena. Música ao vivo de influências médio-orientais. Muitas côres e muitos idiomas, como na antiga Babilónia. O terceiro que acabamos de fazer em Abril, em Montreal, chama-se "Amanhã" e é a propósito do futuro. Só trabalhei com jovens com menos de 25 anos. Eram bailarinos, artistas de circo, uma criança e uma rapariga que é surda e só fala com linguagem gestual. Era a intérprete dos artistas, ela que não tinha voz era a voz dos artistas pois o que ela dizia por gestos era o que os artistas pensavam sobre o mundo. Os gestos dela apareciam num écran gigante.
AT: Esse espectáculo vem cá? Seria interessante pois faz parte da triologia...

PV: Não sei.

AT: Quais os seus projectos próximos?

PV: Para o ano vamos apresentar a triologia inteira em Montreal, pois cada espectáculo foi apresentado em anos diferentes. Vamos também começar a montar o próximo que estreia em Dezembro de 2007, em Montreal.

AT: Como vai ser?

PV: Em 2007 a nossa companhia faz 20 anos. Há dez anos fiz a "Carta de Amor a Tarentino", um espectáculo em que tentava fazer uma proposta, em diálogo virtual com o Tarentino, diferente, longe da visão do mundo violento do Tarentino. Esse espectáculo foi presentado sobetudo na América mas também na Europa. O próximo espectáculo vai-se chamar Kiss Bill e é uma oposição aos Kill Bill do Tarentino .

AT: Qual é a sua mensagem?

PV: É mais uma pergunta, uma sugestão: será possivel imaginar um mundo sem violência?

AT: Acha que a violência é uma caracteristica masculina?

PV: Não é, mas o mundo ainda é dominado pelos homens que não deixam espaço para uma visão do mundo mais feminina, mais humana.

AT: Mas o Canadá é um país onde as mulheres têm grande peso...

PV: O Quebec é uma das sociedade mais evoluidas do mundo, onde as mulheres têm muito peso e importância. Mas ainda há trabalho a fazer pois os homens normalmente ganham, para o mesmo trabalho, mais que as mulheres...

AT: A sério? No Canadá?!

PV: Sim. Além de que o trabalho das mulheres não diminui ao longo da vida pois trabalha fora, trabalha em casa e é mãe. Nós vivemos em sociedades em que o sucesso é pirâmidal. Tem de se subir a escada ultrapassando o outro. Uma sociedade que não pensa que o sucesso pode ser de outra maneira: o sucesso de ser um bom ser humano não é valorizado. Trazer ao mundo crianças, educá-las para serem bons seres humanos é muito importante mas não é devidamente valorizado.

AT: Mas nos países escandinavos isso é valorizado...

PV: No Canadá também mas há que avançar mais pois não temos a vantagens que as mulheres escandinavas têm.

AT: Como escolheu a música para Cinco Horas da Manhã?

PV: Por acidente. Parte da música é do Oleksa Lowsochuk que é muito jovem. Estava a ouvir rádio no carro, gostei muito da música que estava a passar e esperei pelo fim para ouvir o nome do autor. Depois fui comprar o cd que é o primero cd dele. Esta música é do primeiro cd dele e até agora só nós é que utilizamos esta música como suporte. Depois há uma canção do Gian Maria Testa que é repetida duas vezes. A música mais oriental é do Steve Tibbetts e Choying Drolma. A última música é de um grupo canadiano que se chama K OS.

AT: No princípio eram quinze mil fotos...

PV: Sim. Tivémos que fazer uma grande escolha.

AT: Houve intenção de produzir uma mensagem política? Muitas fotos, muito impactantes, de gente a dormir na rua...

PV: Não. Não houve. Foram fotos tiradas ás cinco horas da manhã... Também há os jogadores de boxe tailandeses que se preparam para o treino que começa áquela hora.... E as dos mosteiros....

AT: Pretende utilizar as outras fotos para futuros trabalhos?

PV: Não, não me pertencem. São do fotógrafo.

AT: Porquê a temática do psicólogo?

PV: Não é um psicólogo. É mais um guia espiritual. Ela não tem um problema. Não está a atravessar uma crise. Falando com este senhor ela começa a identificar e a verbalizar a sua preoupação que é humanitária com o mundo.

AT: Porque a escolha de uma personagem que é uma fotógrafa?

PV: Queriamos usar as fotos e essa personagem dá-nos uma razão lógica para estarem ali, ainda que a razão seja sobretudo poética.

AT: Houve uma preocupação de trabalhar a profundidade, os vários planos do espaço...

PV: Sim. Tem que ver com a preocupação poética, assim como a criação de personagens misteriosas. Aquelas duas bailarinas, ainda que o público não se dê conta, representam duas facetas da mesma mulher. Uma que está sempre a fazer oração, agarrada ao chão. A outra é mais aérea, mais leve, mais serena.

AT: Nesta última o movimento é clássico...

PV: Ela tem uma grande formação em ballet clássico e eu procuro utilizar as potencialidades das pessoas.

AT: Foi um prazer esta conversa e espero poder ver outros trabalhos seus.