2006/11/20

Mário Sottomayor Cardia (1941-2006)

Foi meu professor de axiologia e ética na universidade. Uma pessoa educada, serena, que alguns alunos tentaram denegrir, aproveitando uma época em que boa parte da imprensa portuguesa o apresentava como um indivíduo absurdo, uma espécie de palhaço, simplesmente porque se tinha disposto a disputar a presidência sem o apoio de partidos políticos e sem "máquina". Mas não será esse um direito de todos os cidadãos? Não estabeleceu Cardia um paradigma ao ter exercido, ou tentado, um direito dos cidadãos livres, consagrado na constituição portuguesa? Não deveria a imprensa ter tratado com mais respeito alguém que lutou contra a(s) ditadura(s)?
Exatamente nesses tempos em que a imprensa tentava humilhar Sottomayor Cardia, uma "menina", que se considerava muito inteligente e "muito intelectual", escandalizada pelo professor lhe ter atribuído "onze", na escala de zero a vinte, conseguiu arrastar outros alunos num abaixo assinado onde propunham o afastamento da pessoa e professor honesto que sempre foi Sottomayor Cardia. Uns "meninos" que face a outros docentes, mais protegidos ou "poderosos", dos quais todos, ou quase, tinham algo a reclamar, não ousavam sequer apontar o dedo ou levantar a voz. Reclamavam e muito! Em privado e sem nunca desencadearem qualquer procedimento público. Talvez porque existe a ideia que os professores universitários portugueses, depois de passarem a agregados e associados, fazem o que querem, e a avaliação do seu desempenho é um bluff. E que os catedráticos, em Portugal, materializam uma espécie de "sabedoria última" mas, também se sabe muito bem, que muitos não mantiveram os seus conhecimentos "em dia", possuindo uma "sabedoria última"... congelada!* Voltando a Cardia, os alunos aproveitaram-se do desgaste público que ele estava a sofrer para o atacarem. Atitude que revela uma "má humanidade".

Sottomayor Cardia foi uma pessoa boa, um professor discreto, que passei a admirar quando me contaram que foi torturado pela "pide", a polícia fascista, e que manteve uma postura "heróica". Lembro-me que no trabalho que fiz para a disciplina que ele ensinava equacionei partes da Crítica da Razão Prática. Já passaram muitos anos. No entanto recordo-me das sugestões inteligentes que, com uma simplicidade impressionante, Sottomayor Cardia me fez. Não sou católico, mas "paz à sua alma". Ele merece-a bem. AST

* embora as situações abaixo referidas supostamente não aconteçam na universidade pública onde Cardia foi professor, deve ser dito que a actual lei portuguesa da autonomia das universidades, que investe os reitores do poder de reconhecerem diplomas emitidos por instituições estrangeiras, passando a ser válidos dentro da universidade respectiva, abre a porta para o reconhecimento de "diplomas de doutoramento" comprados a obscuras "universidades" privadas, que existem nomeadamente nos Eua, permitindo a qualquer "esperto" que "adquira" um "doutoramento" desses, no caso de um reitor o reconhecer, poder ser professor (ou investigador...) na universidade do reitor que o aceitou. Também os diplomas de doutor emitidos pelas universidades espanholas, que não têm qualquer validade em Espanha porque os diplomas que valem são emitidos centralmente e assinados pela/o ministra/o que tutela as universidades e pelo rei, passam a ser "válidos" em Portugal se um reitor os reconhecer para exercício na "sua" universidade (desrespeitando, se tal acontecer, o que foi assinado em Bolonha onde consta que todo o diploma que não tenha valor no país de origem não tem validade no espaço comunitário europeu). Não só é paradoxal, como permite a disseminação da mediocridade e dos "empregos para os amigos", a lei que actualmente regula a autonomia das universidades portuguesas!