2004/08/11

HOMENAGEM PÓSTUMA A UM PROFESSOR

CÉSAR MORAIS foi o meu primeiro professor de harmonia e contraponto. Um bonacheirão. Vivia a vida com alegria. Dispersava tolerância e optimismo. Não aspirava à história! Acho que naqueles tempos de contemporaneidade forçada, estava mesmo convencido que o seu nome seria esquecido mal desaparecesse o último dos seus alunos.

Anos depois eu era compositor. Da contemporaneidade! As minhas obras passavam regularmente em todos, ou quase todos, os programas musicais da TV2. As obras de César Morais não passavam. Na realidade nem eram tocadas. A sua estética era clássica e conservadora. Quando falávamos nele era com um misto de ironia e desconsideração. Os nossos "mestres" nem sequer o consideravam um compositor. Nunca coloquei o nome dele no meu curriculum.

Hoje (16 de Agosto de 2004), por puro acaso do destino, veio-me parar ás mãos um cd. No topo em letras grandes e brancas lia-se "César Morais". Não relacionei. Pensei ser um novo "compositor contemporâneo" e decidi escutá-lo. Estranhei. Era lindo mas neo-clássico. O tal revivalismo, pensei.
Era uma interpretação belíssima da Orquestra Clássica do Porto sob direcção de Werner Stiefel com Martin Ostertag no violoncelo. Continuei a escutar, sempre convencido ser algo conservador mas actual e gostei, apesar da estética "caduca"...
Olhei para a contracapa e vi a foto de um busto familiar. Continuei sem relacionar. Talvez seja o maestro, pensei. Comecei a ler a biografia do compositor e ia tendo um "baque".

- Mas este foi meu professor! O meu primeiro professor de harmonia, exclamei muito alto espantando todos os que se encontravam na sala.


A história é interessante e implacável: alguns dos "mestres" que desprezavam César Morais estão mais ou menos esquecidos. Espero que alguns venham a ser devidamente "recuperados" e valorizados, pois foram compositores de talento. Eu, por contextos vários, abandonei desde há muitos anos o trabalho de criação e desfiz o grupo de música que fundei e dirigi. Alguns de nós (os "contemporâneos") que mantiveram a produção e se "encostaram" a "mestres" influentes, estão no "top" mas talvez a história lhes venha a passar uma rasteira. E também a alguns dos "mestres" que acreditam já ter o seu nome gravado na eternidade...


César Morais faleceu em Agosto de 1992 e eu não soube de nada.

É o único compositor português que figura no Dicionário de Biografias Internacionais publicado em Cambridge. AST






















UM PIANISTA PARA O SÉCULO XXI


Alexey KOURBATOV, nasceu em Moscovo em 1983 e estuda no Conservatório Tchaikovsky em Moscovo no 5º ano de piano. É um daqueles casos raros que não vai necessitar de ganhar concursos importantes para ganhar visibilidade mundial pois Alexey já fez recitais em todos os continentes e vai continuar a dar voltas ao mundo oferecendo a sua arte, a sua enorme técnica dominada por um talento e uma musicalidade pouco mensuráveis, a todos os que desejem viver momentos únicos no plano da grande interpretação artística.
No dia anterior tinham-me alertado para este recital e evidentemente não o perdi, novamente na sala dos espelhos do Palácio Foz, a convite do 1º Festival Internacional de Violino de Lisboa.

O repertório escolhido, tocado sem intervalo denota a inteligência, o gosto musical e a segurança do pianista.

Na Tocata em Ré menor de Bach, Alexey usou e abusou de uma interpretação romantizada, bem ao estilo da escola russa, que surte efeito quando sai das mãos e da sensibilidade de um artista de excepção. Caso contrário poderia ser um enorme "pastelão". Não foi. Antes pelo contrário. Da postura meditativa na introdução, à "caída" das partes fugadas em que tudo foi transparente mas trabalhado de forma a singularizar cada uma das partes - feito que poucos pianistas conseguem com eficácia - ás subtilezas dinâmicas que causavam surpresa e espanto, tudo revelou uma personalidade musical já claramente definida na sua singularidade de músico de grande técnica, génio e inteligência musical.

O "andante majestoso" da Suite Quebra Nozes de Tchaikosvsky, versão para piano de Pletenev, revelou uma enorme sustentação do discurso musical, um grande som ao serviço da expressão musical, uma impressionante paleta dinâmica e um controle técnico absoluto por parte do intérprete.


As mesmas qualidades emergiram na Poema de Fogo de Alexander Scriabin, obra fantástica e impressionante da última fase do genial compositor russo.


Claro está que a "prova de fogo" seria a Sonata em Si menor de Liszt, atacada a seguir à obra de Scriabin.

A já referida paleta dinâmica do pianista foi aqui totalmente explorada ao longo desta obra monumental. O tal auto-controle e controle técnico, servido por um enorme talento e sensibilidade, foram igualmente o "leit-motiv" desta interpretação.

O início em pianíssimo, com o ataque seco das últimas notas do 1º tema introduziram-nos numa atmosfera de um dramatismo intenso que iria explodir no desenvolvimento que deixou o público em estado de hipnose. Os legatos excelentes, os crescendos paradigmáticos, entre muitos e variadíssimos aspectos, revelam uma forte e inteligente personalidade musical, um conceito de obra e de interpretação totalmente pessoal, coisa que faz a diferença entre um bom pianista e um pianista de génio e excepcionalidade.
Esta interpretação da Sonata de Liszt foi um momento especialmente memorável deste festival que já nos ofereceu outros momentos de grande música e este pianista será (raramente a minha intuição se engana sobre os pianistas. Fui eu o primeiro a escrever que Sokolov é o maior pianista vivo, coisa que agora é práticamente consensual entre músicos, pianistas e "críticos" com inteligência e sensibilidade musical) um dos grandes pianistas deste século.

Parabéns de novo ao Festival, a todos os colaboradores voluntários que têm oferecido o seu tempo e a sua melhor dedicação a este grande e novo evento que honra Portugal, parabéns estes dirigidos muito especialmente à grande dinamizadora do evento Lilia Rakova que por acaso (ou não) vive em Portugal e é tia do famoso pianista russo Boris Berezovsky. Foi ela quem convidou pessoalmente todos os nomes grandes (e os grandes ainda sem nome grande) que têm brilhado e vão continuar a brilhar no Sala dos Espelhos, espelhos aqueles que agora brilham com mais intensidade. AST


















SACHIKO SGAWA E KOO-RYEONG PARK NO FESTIVAL INTERNACIONAL DE LISBOA



Apresentaram-se no dia 12, na belíssima Sala dos Espelhos do Palácio Foz, a violinista Segawa (estudou no Conservatório de Moscovo com Valery Klimov, em Paris com Regis Pasquier e em Berlim com Thomas Brandis. Recebeu vários prémios internacionais e apresentou-se como concertista com várias orquestras em todo o mundo) e a pianista Park (estudou em Tókio e em Moscovo com M. Voskressensky durante 8 anos. Ganhou o primeiro prémio do Concurso Internacional de Maria Canals em Barcelona e o primeiro prémio no Concurso Internacional Pontoise em França).

A escolha do repertório denotou logo à partida uma grande dose de inteligência: Beethoven, Sonata op.23 nº4; Brahms, Sonata op.100 nº2 e Szymarowski com a Sonata 0p.9 em Ré menor. Três sonatas de grande interesse e génio musical.


A leitura feita de Beethoven revelou imediatamente a excelente técnica e a perfeita afinação da violinista que nos ofereceu um som despojado com pouco vibrato, afastando-se das interpretações demasiado romantizadas do génio intemporal da história da música. O segundo andamento da sonata pareceu-me um pouco plano e pessoalmente teria optado por um maior "cantabile" no violino.
O piano foi súbtil e consistente com o violino.


Em Brahms, tal como tive oportunidade no final de manifestar à violinista, esperaria um maior arrebatamento pois nas sonatas para violino e piano deste compositor estamos no coração do romantismo. Seria necessário mais "vibratto" e maior contraste no desenvolvimento e na confrontação temática. A violinista revelou um som intenso no registo grave mas um som empobrecido nos registos médio e agudo.
No entanto no "andante tranquillo" mostrou ser uma intérprete inspirada e no movimento final(Allegretto grazioso) conseguiu um som redondo e profundo, sobretudo nos médios e graves.


O grande momento chegou depois do intervalo com a sonata do genial Szymarowski. Uma sonoridade intensa e um dramatismo sustentado conseguiu emocionar o público. No "Andantino tranquilo e dolce" a violinista ofereceu-nos uma leitura quase meditativa e um excelente contraste na apresentação do tema B. Aqui os agudos surgiram-nos com outro som, redondo e consistente como já tinhamos escutado nas outras tessituras. O andamento final foi simplesmente espectacular com uma total simbiose violino/piano.

Como encore foi-nos dado um nocturno op. póstumo de Chopin, belo e conseguido arranjo do grande violinista Nahtan Milstein que é o favorito de Segawa e um dos meus paradigmas da interpretação ao violino.
Para finalizar ofereceram-nos a pequena peça "Rosemarin" do também grande violinista Kreisler, que pelos vistos se aventurou na composição musical.

Um recital de elevadíssimo nivel artístico-(re)interpretivo.
Parabéns às intérpretes.
Parabéns ao novo Festival de Lisboa (sempre em Lisboa...). Que perdure!
Os concertos continuam diáriamente até 17. AST














ZAKHAR BRON NO PALÁCIO FOZ

O violinista que é o director artístico do Festival de Violino que decorre actualmente em Lisboa, apresentou-se acompanhado da violinista LATICA HONDA-ROSENBERG (Medalha de prata do Concurso Tchaikovsky, edição 1998, sendo a primeira violinista alemã a receber este galardão de importância mundial) e da pianista Irina Vinográdova.

Primeiramente foi-nos ofrecida a sonata para 2 violinos e teclado op2 nº7 de Haendel. Num mundo bem sortido de interpretações com instrumentos da época tangidos por músico geniais é algo estranho ouvir-se obras do barroco com violinos de cordas de metal acompanhados por um piano. A interpretação foi de há um século atrás. No entanto tenho de fazer justiça à sonoridade dos violinistas, ao sentimento da interpretação de Bron. O "arioso" foi belo, com uma "arcada frásica" (o termo é meu apesar de não o ter registado) convincente.

A "Suite in the old style" de Schnittke é um pastiche clássico feito no final do século vinte e não percebo porque intérpretes de qualidade não pensam em trabalhar obras contemporâneas "a sério" em vez de revivalismos patéticos.


Com a Suite op.10 de Chistian Sinding, Bron demonstrou-nos ser não simplesmente um virtuoso mas um músico de talento e musicalidade. Grande técnica, som "redondo" e "profundo", "timing" excelente é o que posso dizer para uma obra que é no mínimo interessante.


Foi com a sonata de Prokofieff para dois violinos que o recital atingiu o seu zénite, como seria de esperar. No entanto fiquei com a sensação que Honda-Rosenberg tem um som áspero nos agudos o que por vezes deixa uma impressão de agresividade. No entanto é sem dúvida uma violista poderosa.


"L'après-midi d'un faune" de Claude Debussy num arranjo de J.Heifetz, foi para mim o melhor momento do recital. Início como um sopro, um balanço frásico absolutamente conseguido, oitavas genialmente interpretadas por Bron e um piano que conseguiu produzir uma ambiência "impressionista" (passe o lugar comum), deram-nos uma interpretação algo paradigmática deste arranjo.


Na Fantasia em Dó Maior op13 de Schumann, num arranjo de Kreisler, Bron introduziu-nos no "grande romantismo" com uma interpretação que arrebatou o público e conduziu a 4 encores (arranjos e peças de Rachmaninov, Chopin, Chaminade e Massenet) em que os efeitos (pizzicatos, harmónicos, glissandos...) produzidos em obras de fácil audição fizeram o público delirar mas não impediram o emergir da musicalidade de Bron que tem sem dúvida um som belo e uma grande técnica se bem que muito pontualmente controle mal a afinação. Zakhar Bron: um dos últimos (o último?) românticos do violino. AST