2006/05/03

MOZART NO FEMININO

Na "grande música" não há "cotas": há trabalho exaustivo mas inteligente, muita inspiração e técnica perfeita. Depois vem a singularização que é aquilo que torna única determinada interpretação. Hilary Hann é um dos zénites da interpretação violinística na actualidade. Acompanhada pela pianista Natalie Zhu ofereceu-nos, numa gravação de 2004 lançada para o mercado em 2005, uma das mais geniais interpretações de sonatas de Mozart para violino e piano. O registo está disponível ao "preço forte", mas é possivel adquiri-lo, por cerca de oito euros, nas promoções que se fazem com regularidade em alguns países da Europa. Hann e Zhu dão-os fantásticas interpretações das sonatas k 301, k 376 e k 526 de Amadeus. Um registo para a história.
O outro "caso" é o da violista Midori Seiler. Acompanhada por Jos Van Immerseel ao pianoforte, ambos utilizando instrumentos da época (*), oferece-nos uma belíssima leitura, despojada de vibratos, onde a sensibilidade e grande musicalidade tocam profundamente. Para tal contribuiu, evidentemente, o desempenho de Immerseel, "especialista" em música antiga, também ele um grande artista. Aqui são-nos oferecidas interpretações, inesquecíveis, das sonatas k 379, k 454 e k 526. Este registo foi re-editado muito recentemente, ao preço de 3,99 euros, numa promoção de três jornais europeus, entre os quais o El Pais (Espanha) e o Diário de Notícias (Portugal). AST

(*) Os instrumentos dos grandes violinistas são, geralmente, da "época", isto é, de célebres construtores que imprimiram a sua marca pelo timbre excelente e particular de que o instrumento é dotado. Mais do que o instrumento são outros factores que interessam na execução ao "estilo da época": o tipo de "respiração" (que condiciona a construção do fraseado), a colocação do arco (na música antiga substitui-se o vibrato pela aproximação do arco ao cavalete, técnica que produz diferentes colorações tímbricas), o arco (a curvatura de um arco antigo é em forma de U invertido) e a forma como se segura o dito (que condiciona igualmente a forma de trabalhar o fraseado). Há, evidentemente, o material das cordas, que é tripa (actualmente sintética) quando se executa ao "estilo da época". Neste "estilo" o instrumentista segura o instrumento sem recorrer ao auxílio de suportes.
















INAUDÍVEL

Uma editora chamada "Andrómeda" trouxe ás estantes, numa re-edição de 2005, um duplo cd de Sviatoslav Richter, pianista que tive o privilégio de escutar duas vezes em recital a solo. No primeiro cd traz-nos obras de Bach, com as sempre elevadas acutilância e sensibilidade características deste grande pianista, sendo a última dispensável, não pelo desempenho de Richter, mas pelo da orquestra que o acompanha no concerto bwv 1052, dirigida, sublinhe-se, por um grande director: eram outros tempos e aquele género de leitura, actualmente, é considerada má. Se neste primeiro cd a qualidade do som é muito aceitável, já no segundo é vergonhosa, tornando incomprensíveis as geniais interpretações, ao vivo, dos Quadros de uma Exposição de Mussorgsky, as sonatas 2 e 6 de Scriabin, assim como os doze prelúdios op 11 do mesmo compositor. Nos tempos que correm isto é inadmissivel e a etiqueta deveria ser impedida que continuar a vender gato por lebre, até porque pratica preços muito superiores aos da Brilliant Classics, por exemplo (infelizmente não se pode afirmar que se possam dar "montes" de exemplos...), que consegue uma boa qualidade sonora nas re-edições que oferece ao preço de 3 euros por cd (em Portugal é mais mas existe sempre a possibilidade dos leitores encomendarem pela net). Para não falarmos em re-edições com fraca qualidade sonora, como as desta "Andrómeda", onde dez cd's são vendidos por sete euros... AST

Nota: Em Lisboa, Portugal, na Companhia Nacional de Música, na Rua Nova do Almada, podem-se adquirir cd's da Brilliant Classics a menos de 3 euros cada.















DIE ZAUBERFLOTE

Recentemente foi posta à disposição do público uma gravação de Die Zauberflöte, de Mozart, sob direcção de Claudio Abbado à frente da Mahler Chamber Orchestra e do Arnold Schoenberg Chor, com René Pape no papel de Sarasto e Erika Miklósa no de Rainha da Noite.

Trata-se evidentemente de um elenco de luxo mas devo avisar os desprevenidos, que antes de decidirem adquirir ouvem um pouco do início e vão gostar, do facto de parte substâncial da Flauta Mágica serem diálogos em alemão. A abertura sob batuta de Abbado é fora-de-série, mas a mesma abertura sob direcção de Nikolaus Harnoncourt não fica nada a dever a esta leitura recentíssima, gravada ao vivo em 2005, de Claudio Abbado, se bem que, neste caso, uma interpretação não se possa substituir à outra. Apesar das evidentes alusões franco-maçónicas (*), Die Zauberflöte é uma criação dentro da tradição vienense do singspiel: uma opereta com muitos diálogos. Mesmo em dvd, com visualização da encenação, A Flauta Mágica é uma obra que se torna aborrecida devido exatamente ao excesso de diálogos. Ao vivo quase que adormeci, apesar da qualidade dos intérpretes. Em cd é absolutamente dispensável. Quem faça questão de conhecer os melhores momentos desta obra pode adquirir um cd que contenha alguns excertos, como a referida abertura e uma ou outra ária, nomeadamente a celebérrima ária da rainha da noite. De resto, a Flauta Mágica não é, na sua consistência como um todo e apesar da elevada conceptualidade numérico-simbólica, uma das óperas onde o génio mozartiano se revele no seu explendor máximo. Existe um cd em que Harnoncourt dirige aberturas de óperas de Mozart que inclui a abertura de A Flauta Mágica. Cd esse que foi re-editado há anos entre os "100 Best" da Warner Classics, a preço reduzido, e que é uma preciosidade.

Actualmente um diário português vende cd's de Mozart a preços convenientes, cd's esses que podem ser adquiridos separados do jornal. Apesar de algumas, poucas, dessas ofertas serem duvidosas uma vez que existem como re-edições a preços iguais ou até inferiores aos propostos (3,99 euros por cd), com a vantagem, grande, de não terem a publicidade do banco que patrocina a iniciativa, outras podem ser excelentes aquisições. Se comparadas com as "ofertas" de música clássica feitas no passado por um "semanário-referência" português, que eram, na generalidade, interpretações mediocres sem qualquer interesse ou valor artístico, podemos dizer que as re-edições que o diário oferece na actualidade são propostas honestas. Pelo que pûde ver são interpretações de grandes artistas e algumas são gravações relativamente recentes das quais não existem, ainda, alternativas a baixo custo. De resto, o preço da generalidade das re-edições pode ser mais elevado que o proposto pelo referido diário. Eis portanto uma alternativa credível para quem se pretenda iniciar no génio de Amadeus. AST

(*) Parte do ritual maçônico é o emprego de um bater rítmicos três vezes sucessivas. Esta é a parte central da cerimônia, sendo repetida diversas vezes - como o tema em A Flauta Mágica. Segundo Philippe A. Autexier, que editou um livro sobre Mozart e A Flauta Mágica, nas Lojas vienenese do Século XVIII, o ritual empregado nessa época de Mozart continha ritmos característicos para cada grau:

- U - para o Aprendiz
U - - para o Companheiro
U U - para o Mestre

Portanto, os repetitivos acordes três-vezes-três se refeream ao Companheiro ou Segundo Grau. À medida que a ópera se desenrolava, os maçons da platéia deviam ficar estupefatos: um símbolo atrás do outro advinha da Confraria.
...
O número simbólico três domina toda a obra: três bemóis na clave principal (Mi bemol maior), trêsmeninos, três senhoras. Tamino é obviamente apresentado como um "profano" (ou seja, um não maçom), em seguida como um neófito (observem sua conversa com o orador, I ato, Cena 15: o orador lhe pergunta: "Wo willst du kühner Fremdling, hin? Was suchst du hier im Heiligthum" (Onde quéres ir, intrépido estrangeiro? Que procuras neste lugar sacro?), depois como um jovem maçom com o grau de Aprendiz (com sua cerimônica de viagem e voto de silêncio) e mais tarde, no segundo grau, como Companheiro (com o voto de jejum), e por fim o terceiro grau, Mestre (II Ato, Cena 21) A passagem simbólica da escuridão para a luz, parte integram da cerimônia de São João, ocorre com um brilhante efeito em A Flauta Mágica, sendo claramente indicada na ilustração do libreto de 1791. Porém Mozart e Schikaneder pretendiam mostrar mais do que a Maçonaria na cerimônia de São João, representado também os graus mais altos (os chamados Graus Escoceses). Na cena 28 do II Ato a cortina se abre, mostrando dois homens vestidos com armaduras negras e em seguida Tamino e Pamina. É o início das famosas provas de fogo e água, que nos conduzem a um poutro mundo maçônico: o soberano Grau Rosa-Cruz, o décimo oitavo no "Rito Escocês Antigo e Aceito 33º". O libreto original de 1791 observa discretamente que "eles (os homens armados) lêem para ele (Tamino) a escrita transparente que está gravada numa pirâmide". Ao som das palavras "fogo, água, ar e terra" o tetragrama sagrado JHVH talvez aparecesse por ser a parte central deste Grau Rosa-Cruz. A 30ª cena no II Ato em que Monostatos, o criado africano, junto com a Rainha da Noite e seu cortejo, tentam invadir e destruir o templo de Sarastro é um simbolismo do 30º grau do Rito Escocês, o "Grau da Vingança", enquanto que o final da ópera, II Ato, Cena 33, quando a escuridão (a Rainha da Noite) foi vencida e a luz (Sarastro, Tamino/Pamina, Papageno/Papagena) triunfa é representado pelo grau final (33º) do rito escocês - no triângulo cujo significado é "sabedoria, beleza e força" (Weisheit, Schönheit, Stärke), como no libreto. O lema do 33º é Ordo ab Chao (ordem advinda do caos) ou da escuridão para a luz. Para sublinhar a parte musical desta importante cena da Cruz Soberana com os homens armados, Mozart escolheu um tipo de prelúdio coral, empregando a antiga melodia luterana de 1524 "Ach Gott, von Himmel sieh darein" (ele havia escrito estas palavras num contexto diverso como um estudo contrapotístico para sua aluna Barbara Ployer ou no livro manuscrito de outra pessoa em 1784). A solenidade desta parte da ópera é assim diferente de qualquer experiência austríaca ou católica. É uma solenidade bíblica e com isso quero dizer, derivada da Bíblia. Ver Isaías 43:2:

Quando passares pelas águas eu estarei contigo: quando pelos rios, eles não te submergirão; quando passares pelo fogo, não te queimarás, nem a chama arderá em ti.

"Caso você, leitor, passe a encarar todo este simbolismo numerológico com ceticismo, com certeza devo acrescentar que a introdução orquestral desta cena contém dezoito grupos de notas. Sarastro, o Sumo Sacerdote (ou seja, Venerável Mestre da Loja) aparece pela primeira vez no I Ato, na cena 18. No começo do II Ato, Sarastro e seus sacerdotes entram: em cena estão (como o libreto de 1791 faz questão de especificar) precisamente dezoito sacerdotes e dezoito cadeiras e a primeira parte do coro que eles cantam, O Isis und Osiris, tem a duração de dezoito compassos. Quando Papageno interroga a monstruosa velha, que se tornará Papagena, quantos anos tem, ela responde: Dezoito (provocando sempre hilariedade na platéia). E quando os três meninos aparecem suspensos no palco em uma máquina (o libreto de 1791 enfatiza) ela está "coberta de rosas" . Porém abandonando esta fascinação hipnótica com o 18º (Rosa-Cruz) devemos lembrar que dezoito é formado por seis vezes três, e três na verdade é o número simbólico crucial e básico da ópera." (Enquanto o Rito Escocês sempre fora uma organização de elite, o ritual mais comum de São João seria o mais familiar para os maçons vienenses que assistiram à primeira representação de A Flauta Mágica.)

in http://www.geocities.com/crdpldl21/index.html