Álvaro Teixeira Acabamos de o escutar interpretando e dirigindo obras muito antigas...
Philippe Pierlot Toquei um repertório à volta de Henri Purcell, seguramente estre os compositores barrocos dos mais importantes. Ele pertençe a uma época muito muito rica em Inglaterra, particularmente a época elisabeténe e nesta época em Inglaterra há um número absolutamente impressionante de compositores de um nível excelente. Os mais conmhecidos são Bird, que não é um compositor muito conhecido mas que, em meu endender é um dos grandes compositores da história da música, quase ao nível de alguém como Bach, ao nível da ciência e da profundidade da composição. Bird que não tocámos neste concerto...
(risos)
PP Purcell é o herdeiro desta tradição polifónica inglesa, muito pessoal, no sentido destes compositores que posssuem uma verdadeira identidade, ligada, talvez, à insularidade dos ingleses, e voilá, as peças que tocamos hoje, particularmente a fantasia Purcell são ao mesmo tempo o apogeu e o canto do cisne desta tradição porque, despois de Purcell, esta tradição de escrever fantasias para conjuntos de cordas, vai acabar, sendo portanto a apoteose e o fim desta rica escola.
AST Mas estas obras soam a algo extático, não acha?
PP Então...
AST Não se sentem as modulações...
PP Não partilho nada da sua opinião...
(risos)
PP Acho exatamente o contrário...
(risos)
PP Dentro da música barroca, e em particular nas fantasias, Purcell é dos compositores mais audaciosos, ao nível, justamente, da harmonia. Purcell foi muito influênciado pela música italiana. Bom... a música que tocamos neste concerto, é verdade, vem de uma outra tradição. Da tradição da música muito melancólica. É verdade que não é uma música extrovertida. É totalmente o contrário disso. É uma música muito interior. Na obra de Purcell há outro tipo de produções mais influênciadas pela escola italiana porque Purcell gostava muito dos compositores italianos, mas ele apreciava-os não pelo seu aspecto exuberante, mediterrâneo, digamos, mas, pelo contrário, pela profundidade das suas composições. E naquela época em Itália existiam compositores que faziam exatamente investigação no sentido de encontrarem harmonias mais ricas e expressivas. Estamos no lado oposto a figuras muito conhecidas como Vivaldi que é mais exuberante e mais...
AST E quais são esses compositores italianos a quem se está a referir?
PP Na música instrumental um compositor que seguramente influênciou Purcell foi Vitali. Coreli vem mais tarde mas há na escola de Roma gente como Carissimi, Cavalli, há também um compositor menos conhecido chamado Maratolli. São compositores muito audaciosos que fizeram muita investigação. Mais tarde, no século dezoito, há a nascença do classicismo que se vai instalar com as formas bem conhecidas como o concerto e a sonata.
AST Muito bem. Nesta festa da música traz-nos exclusivamente repertório da Inglaterra, não é verdade?
PP Pois. De facto o projecto de La Foule Journé, aqui Festa da Música, deste ano, era à volta da Inglaterra. Quando nos contactaram este era o tema que estava previsto e depois ao longo do tempo foi evoluindo para a Harmonia das Nações, mas nós já tinhamos começado a preparar algumas obras. Por isso também vamos fazer um programa com Núria Rial com Haendel. Também é verdade que no nosso repertório temos sempre imensa música alemã como Bach e os seus ancestres... Mas eu penso que o tema da música inglesa é um tema muito bom e muito interessante pois esta música está entre a mais rica mas é talvez a menos conhecida e, é necessário dizê-lo, a menos acessivel ao público pois como sublinhou, e bem, há muita melancolia e extaticismo nesta música. Não é uma música que dê vontade de balançar-nos enquanto a escutámos. Mas possui uma riqueza que é muito interior e que requer uma certa iniciação para conseguir apreciar toda a sua excelência.
AST Numa certa medida é uma espécie de Harnoncourt dos tempos modernos...
(risos)
AST Pensa "evoluir" para o classicismo, ou não?
PP Em duas semanas partimos para o Japão e lá vamos tocar Haydn e Mozart...
AST Ha!
PP Mas é a excepção para nós...
AST Ho...
PP Bom... Eu toco viola de gamba, por isso o meu repertório é sensivelmente o século dezassete, o século dezoito também... todo este periodo em que a viola de gamba teve uma grande projecção e muito repertório foi escrito para este instrumento. Mas eu toco também o bariton que é um instrumento menos conhecido, parecido com a viola de gamba, mas com cordas simpáticas, e para o qual Haydn escreveu muita coisa. E é verdade que me sinto muito próximo da música de Haydn. Por outro lado, pela primeira vez dirigi o Exultate de Mozart, recentemente.
AST Este é um percurso bem conhecido... músicos que começam pela música muita antiga, passam ao barroco e pouco depois ao clássico. Para já não falar dos que "saltam" para o romãntico... Harnoncourt acabou a dirigir Bruckner...
PP Não penso que esse vá ser o meu caso. Nunca se sabe como a vida vai evoluir... É verdade se me propusessem dirigir uma ópera de Mozart dificilmente recusaria. É uma música da qual me sinto próximo... Mas o meu interesse principal, e penso que vai continuar a sê-lo ainda durante muito tempo, é o século dezassete. Não creio que me vá afastar desse repertório. Penso que aqueles que evoluem para o classicismo e o romatismo é porque, enquanto chefes de orquestra, o classicismo e o romantismo é uma música que dá mais satisfação. Consigo compreender que aqueles que só dirigem sejam atraídos para este repertório. A música de Vivaldi, por exemplo, é um domínio em que um chefe de orquestra pouco pode acrescentar depois das obras serem trabalhadas nos ensaios. Poderiamos dizer que orquestra pode tocar sózinha. Apesar de tudo, quando estou lá á frente dos músicos, posso induzir a certas inflexões no momento do concerto.
ASTMas você toca, dirigindo simultãneamente o agrupamento.
PP Isso depende das obras e do tamanho do grupo. Quando trabalho com côro ou com uma orquestra com solistas, torna-se necessário estar à frente a dirigir para coordenar todo o conjunto e ser quem mantém a consitência interpretativa. Quando não há um chefe pode ser interessante porque permite maior liberdade de iniciativa aos músicos e dar azo a versões diferentes. Mas existir um chefe que coordene todo o conjunto pode revelar-se importante também.
AST Finalmente é a interpretação do chefe de orquestra que nos interessa... como no classicismo e no romantismo... não concebo uma orquestra tocar as sinfonias de Mahler sem um verdadeiro maestro à frente... é verdade que a Filarmónica de Berlim, depois da morte do Karajan, fazia isso com Beethoven... à moda do Karajan... Não o fazia com Mahler. Evidentemente. Mas nós queremos é a versão, a re-interpretação, de tal ou tal maestro. Se fôr de facto um maestro... Porque se fôr um idiota armado em chefe-de-orquestra mais vale deixar a orquestra tocar sózinha... na verdade a Filarmónica de Berlim, depois do Karajan, tocava sempre igual e os maestros movimentavam os braços, acompanhando-a. Só mesmo directores a sério, grandes artistas com carisma, conseguiram fazê-la tocar como eles desejavam. E não foi fácil...
PP Pois. Diz-se frequentemente que a Filarmónica de Berlim podia tocar o Beethoven, sem maestro, à maneira de Furtwängler ou do Karajan... Mas bom... a verdade é que quando o Furtwangler ou o Karajan estavam lá era seguramente diferente...
AST Pois...
PP Eu sou antes de tudo um instrumentista. Quando dirijo é porque é de facto necessário ir lá para a frente. Também porque desejo dar a minha visão da obra. Há uma ópera de Marin Marais que viu o dia graças à minha iniciativa. Depois do século dezassete não tinha voltado a ser apresentada... Fui eu que a re-escrevi. É sobretudo este tipo de coisas que me interessam enquanto chefe-de-conjunto...
AST Também é um musicólogo...
PP Desde sempre um dos aspectos que me atrai nesta música é a vertente da descoberta. Daí o nome do nosso grupo Ricercar. É o estado de espírito de estar sempre em investigação, quer do repertório, quer da maneira de o interpretar. É apaixonante porque percebemos que há uma quantidade impressionante de obras ainda por descobrir, por vezes de obras maiores de compositores a re-descobrir. Mesmo ao nível da interpretação de obras mais conhecidas, e nós dedicamo-nos neste momento a trabalhar algumas criações de Bach, ainda há muito para pesquizar, por exemplo ao nível da gestão das forças instrumentais e vocais, ao utilizar um grande orgão de igreja, por exemplo... nós acabamos de fazer um registo utilizando um grande orgão, não um orgão positivo como habitualmente se faz em concerto e também nos discos, decidimos fazer este registo com um verdadeiro orgão, um grande instrumento, como Bach o fazia na sua época. Isto parece um detalhe mas é este género de coisa que pode influênciar enormemente uma interpretação. Isto foi só um exemplo para lhe explicar que na música do passado, de cujas raízes estamos já muito afastados, há ainda muitas práticaa e hábitos a re-descobrir e esta é a vertente mais rica e apaixonante para quem trabalha e interpreta este género de música.
AST Uma resposta de um minuto para acabarmos: o que pensa da produção musical contemporânea?
PP Eu evoluí num meio musical onde a música contemporânea era muito importante. Nasci em Liége na Bélgica, onde o director do conservatório na época em que eu o frequentei era Henri Pousseur...
AST E Boesmans...
PP Exato. O Philippe Boesmans nasceu na minha cidade. Mas o Pousseur, que não é uma figura muito conhecida como compositor, fazia parte do círculo de Stockausen, Bério, Cage e no conservatório quando fiz os meus estudos escutei a interpretação de todas as obras de todos esses compositores que vinham regularmente ao conservatório para falarem sobre elas e orientarem a sua criação. Foi uma música na qual cresci e o nosso grupo encomenda muito regularmente obras a jovens compositores para serem executadas nos nossos instrumentos antigos.
AST Philippe Pierlot: muito obrigado por esta conversa densa e rica. Estarei lá para escutá-lo nos concertos que se seguem.