2006/10/29

THE SMARTEST GUYS IN THE ROOM

"Enron", documentário de Alex Gibney (Eua 2005), encerrou o Doc Lisboa 2006, mostrando-nos a face mais radical do chamado "liberalismo": aquele "liberalismo" que consegue tirar "coelhos da cartola" que providenciam ganhos de milhões para alguns dos gestores de topo, e que, no final, conduz ao empobrecimento dos mesmos de sempre: pequenos e médios accionistas que não acederam à "informação priveligiada" e dezenas de milhares de funcionários (não só da Enron) que ficaram sem trabalho. Neste caso, peculiar, até foram arrastados grandes accionistas, os bancos, que fecharam os olhos ás violações das mais elementares "leis do mercado", e da contabilidade, na expectativa de lucros gigantescos. Bancos esses que no final lavam as mãos como se a culpa fosse exclusivamente dos "smartest guys" da Enron.

Um documentário elucidativo do funcionamento do mercado financeiro, que no caso Enron atingiu o seu apogeu máximo com grande estrondo. Algumas pessoas consideraram não ser este um filme para encerrar o festival. De facto, se pensarmos nas grandes figuras presentes neste festival como Vittorio De Seta e Makoto Satô, cujas estéticas, muito diferentes, estão nos antipodas da de Gibney, terei de dar razão a essas pessoas. No entanto, "Enron: the smartest Guys in the Room" foi, e muito bem, apresentado neste "doc". O que para mim é o principal: trata-se de um filme, no mínimo, "pedagógico". A não perder.

No que diz respeito aos filmes em competição que foram premiados e que entendo merecerem uma referência neste espaço, para além do já referido "Kz", quero destacar o trabalho de Cristobal Vicente, "Arcana" (Chile 2005), sobre a prisão de Valparaiso. Trabalho desenvolvido desde 1998, quando a prisão ainda estava em funcionamento, que tem valor como documento e como obra cinematográfica. O travelling aéreo final, partindo da terra avermelhada da prisão abandonada, é exemplo do que acabo de afirmar. O som foi trabalhado com grande inteligência. Um filme excelente que só recebeu uma "menção honrosa" (que palavra feia...).

Excelente e divertido é o filme de Tiago Pereira sobre o que resta das antigas tradições orais do norte de Portugal. Um Portugal "profundo", para muitos desconhecido, que Tiago trouxe, da melhor maneira, até nós. "Onze Burros Caem de Estômago Vazio" (Portugal 2006), só dura 28 minutos. São 28 minutos fantásticos que foram, muito justamente, premiados. Absolutamente a não perder.

Em "Un Pont sur la Drina" (Bélgica 2005), Xavier Lukomski mostra-nos em plano fixo a ponte sob a qual passaram centenas de cadáveres humanos mutilados durante a guerra da Bósnia. A ponte que "viu" horrores e sobre a qual, actualmente, a vida decorre com aparente normalidade. Ouvem-se os testemunhos prestados em tribunal marcial. AST












INCRÍVEL INDIA

Pirjo Honkasalo, da Finlândia, seguiu uma família que, para homenagear a alma da falecida mãe, decidiu fazer uma peregrinação de 6000 km, desde a foz do Ganges até à nascente nos Himalaias.

Em "Atman", que em sânscrito significa alma, de 1996, e que conclui a "Triologia do Sagrado e do Demónio", Honkasalo mostra-nos uma Índia vista a partir do seu interior, uma das Indias que escapam aos turistas e a muitos viajantes: a India vista pelos olhos dos indianos, ou pelo menos uma boa aproximação. Mas também a India das multidões que louvam Shiva e que bebem água "sagrada" do Ganges, onde se vêm cadáveres de vacas e pessoas a boiar. A India dos "fenómenos", a India mística.

O "guião" da realizadora foi a ida e o regresso da parelha que, abandonada pelos membros da família (no início eram 16), concretizou a peregrinação, incluindo o ritual de distribuição da água que trouxeram do Ganges pelos aldeãos, sem o qual a peregrinação ficaria incompleta. Um dos documentários mais interessantes apresentados no doclisboa 2006. AST















VARJOJA PARATIISISSA

A Cinemateca Portuguesa está a apresentar um ciclo comemorativo dos 55 anos dos Cahiers du Cinéma, ciclo esse que integra vários filmes defendidos por aquela publicação e dois que não o foram, tal como referiu um responsável dos "Cahiers".

Dia 26 de Outobro foi apresentado um filme, de 1986, do finlandês Aki Kaurismaki, traduzido para português como "Sombras no Paraíso". Trata-se de um filme que nos fala de um "amor normal" que acontece entre duas pessoas "vulgares", que só deixarão de o ser se imaginarmos que existe uma "ideologia" por trás deste trabalho. Em meu entender é um filme "realista", onde a ausência de grandes sentimentos e de grandes dramas se insere no registo do "finlandês comum", mais que em qualquer conceito estético-ideológico de fazer filmes. Há quem não pense assim. É difícil, para quem vive no sul da Europa, em França ou na Alemanha, país de "grandes ideais", que, frequentemente, descambam em grandes atrocidades, é difícil, dizia, conceber um filme "importante", cujos protagonistas sejam um "homem do lixo" e uma empregada de supermercado. O facto dos protagonistas (Kaurismaki não quer que eles sejam "heróis" mas tão pouco deseja que eles sejam "anti-heróis") serem "pessoas comuns", pessoas comuns com capacidade para tomar decisões, demonstra a vontade de aproximação à "realidade", a uma realidade determinada, é certo, mas uma realidade que cria mais laços com os espectadores que as ficções onde se exageram todos os elementos, onde os "heróis" são "seres extraordinários" e onde se tenta fazer uma "metafísica do cinema".

No final, quando embarcam num barco que os conduzirá a Tallin, que naquele tempo fazia parte da União Soviética, poder-se-á ver qualquer coisa parecida à veiculação de uma ideologia, em correlação com a aridez daquela Finlândia (a Finlândia dos anos 70) que Kaurismaki nos dá a ver. Mas trata-se de uma partida. Elemento demasiado poético para ser tomado como um simbolismo específico. AST















POTOSI

"Nosostros, los de Allá" é o trabalho de final de curso de Anna Klara Ahrén, Anna Weitz e Charlotta Copcutt, produzido entre a Suécia, o Chile e a Bolívia, em 2005. Como trata das minas de Potosi, na Bolívia, que deliberadamente não visitei quando lá estive, decidi ver o documentário.
As três estudantes, se por um lado nos mostraram a triste superficialidade dos "novos viajantes", todos orientados pela mesma "bíblia" (uma edição de guias de viagens muito utilizada), por outro lado mostraram-nos um pouco do que pensam aqueles que trabalham como "loucos" para ganhar uns "cêntimos", definição dos mineiros de Potosi dada por um turista que denota uma estupidez radical.
Todos parecem ganhar, desde as agências de viagens, à empresa que administra a mina, até aos políticos que gostariam que os mineiros trajassem à moda colonial, como quando eram escravizados pelos espanhóis, para os turistas terem um quadro histórico ainda mais fiel. Uma vez que as condições de trabalho são as mesmas que no tempo colonial... Os turistas ganham a experiência, "radical", de descerem ás minas e respirarem um ar rarefeito em oxigénio mas, sobretudo, tal como explicaram, observarem as condições de trabalho miseráveis. A "bíblia" recomenda: a não perder.
Este filme mostra-nos o lado mais absurdo e macabro do turismo contemporâneo: um turismo em que os habitantes dos países ricos se divertem, dizendo que estão ali para "aprender", a observar o trabalho quase escravo, demonstrando uma curiosidade patética. Pena que ninguém tivesse dito que pelo menos metade do dinheiro que os turistas pagam, deveria, por direito inalienável, ser entregue aos "actores": aos mineiros que os "viajantes" vão observar. Naquele dia, segundo disse o dono da agência, tiveram 28 turistas. Cada um pagou dez dólares. Num dia a agência "encaixou" 280 dólares. Quanto ganharão os guias? A questão não foi colocada, apesar de um dos guias ter sido entrevistado. Desconfio que ganham pouco. Talvez um pouco mais que os mineiros. Mineiros que são duplamente explorados, como operários e como "actores", pela administração que recebe da agência por cada turista que visita a mina. As estudantes que fizeram o documentário não colocaram estas questões. Os turistas entrevistados também não. Depois de mais uma experiência de viagem (e de filmagens) espera-os um belo jantar e mais uma noite de copos. Tudo a preços fantásticos. A Bolívia, para os estrangeiros, é um dos paraísos na Terra. Para quê fazer ondas? AST
















O CICLO DA CASA

Amos Gitai, considerado o realizador israelita mais importante, teve alguns documentários apresentados no doclisboa 2006. No seu ciclo de três filmes sobre uma vivenda, mostra-nos os sucessivos donos. Os proprietários originais, árabes, foram considerados "ausentes", tornando-se propriedade do governo israelita que num primeiro momento a alugou.

Em "Bait" (1980), um velho médico palestino visita a casa, que é a casa da sua infância, explica como tiveram de se "ausentar", para salvarem as vidas, devido à guerra de 1948. Vêm-se simultâneamente os trabalhos de ampliação pelo novo proprietário, novo proprietário quando o filme foi realizado, que a está a transformar numa "villa". O velho médico explicou que teve de fechar o seu consultório em Jerusalem porque os impostos que o governo israelita lhe cobrava eram muito altos. Os seus pacientes, árabes, não lhe podem pagar honorários muito elevados, ao contrário dos pacientes dos médicos judeus. Quanto à casa da sua infância, os seus filhos têm dinheiro e gostariam de a adquirir, pois está ligada à história familiar. Porque não a compram, perguntou o documentarista. Impossível. Os israelitas não vendem casas a palestinos, foi a resposta. Este documentário foi censurado pela televisão israelita.

Em "News from Home / News from House", realizado em 2005, Gitai continua a escrever a história de casa. Uma judia, habitante actual, passou a infância em Istambul e interroga-se porque tudo mudou. Na Istambul da sua infância coexistiam, em paz, judeus, muçulmanos, cristãos e outros. Era bonita a diversidade que lá se vivia, acrescentou. AST














Kz

De Rex Bloomstein, produzido no Reino Unido em 2005 e apresentado no doclisboa 2006, é um documento fundamental para se compreenderem, em toda a sua inimaginável dimensão de bestialidade, os actos dos nazis.

As testemunhas não são sobreviventes judeus, mas vizinhos (ainda vivos quando as filmagens foram realizadas) do campo da morte em Mauthausen. Aparece também o depoimento de um ex-membro da juventude hitleriana...

Por outro lado o realizador mostra-nos como o horror, praticado num local que hoje deveria estar reservado ao silêncio, é explorado pelos bares das redondezas, onde se bebe, se dança e se canta muito. Há que ganhar dinheiro, aproveitando com os visitantes que não se sentem nauseados com as atrocidades que foram praticadas. Ou com os que vêm a afogar na cerveja, na cidra e nas canções, as lembranças de um passado monstruoso... Rex Bloomstein, com este trabalho, lembra-nos que nunca é demais re-lembrar que o "mal absoluto" não foi, não é, um mero exercício de pensamento. AST