2004/12/17

ENTREVISTA COM HEINZ HOLLIGER

Encontramo-nos entre dois ensaios do Ensemble Contrechamps que interpretou obras do compositor dirigidas pelo próprio no auditório Gulbenkian em Lisboa. Desse encontro resultou esta conversa.

Álvaro Teixeira: Bem... Eu ouvi o ensaio e... a parte da voz é serializada?

Heinz Holliger: Quê?!

AT: Na parte vocal utiliza uma série ou não?

HH: Não, não... É bem mais estricto que uma série.

AT: Quê?!

HH: O que você ouviu no fim é um cânon-espelho-retrógrado. Um quadruple cânon.

AT: Hum... E qual é a função do unissono? Há um unissono...

HH: Tudo é simétrico e as partes encontram-se sempre no trítono lá bemol-ré que são sempre unissonos. Pode haver uma sensação de música tonal mas não é de todo tonal.

AT: Mas olhe que na quinta e na sexta-feira o primeiro ciclo de "lieds" que apresentou estava serializado.

HH: Não.

AT: Não?!!!

HH: Eu escrevi muito muito pouco serializado. Por vezes sómente dois, três compassos para conseguir o efeito de uma música muito automática. Por vezes posso utilizar pontualmente técnicas serializadas mas práticamente nunca me servi da técnica de doze sons.

AT: Encontrei grandes diferenças estilísticas entre o seu primeiro ciclo de "Lieds" (canções) e o segundo.

HH: Claro, existem 35 anos de intervalo entre um e outro. O primeiro ciclo é provavelmente o meu op.1

AT: Ha! Portanto serializado!

HH: Não é serializado...

(risos)

AT: Mas olhe que soa a tal.

HH: O primeiro ciclo está mais próximo do expressionismo da segunda escola de Viena. A expressão patente no segundo ciclo pode ser mais natural. O primeiro revela uma forma de cantar muito estática, muito directamente expressiva. No outro ciclo a voz está bem mais integrada apesar que a harmonia é mais complexa. A condução da voz é como na poesia de Trakl, mais simples e mais ritmada dentro do ritmo da linguagem.

AT: Trabalhou muito com o Bério?

HH: Com Bério não. Eramos muito amigos. Ele dedicou-me a sequência para oboé. A sétima.

AT: Então trabalhou com ele. Como músico.

HH: Sim. Fizemos muitos concertos. Mas foi há muito tempo...

AT: E com Luigi Nono?

HH: Nunca. Venho de dirigir o seu Canto Sospeso no festival de Lucerne. Gosto muito mas esta música está muito muito longe da minha maneira de pensar. Mas trabalhei com Boulez que foi meu professor durante cinco anos.

AT: E Stockausen?

HH: Não nunca. Os meus mestres são Haydn, Mozart, Schumann. Não sou práticamente influênciado pelos contemporâneos. No século vinte foram importantes Alban Berg e Bartók mas depois da guerra foi Alois Bernd Zimmermann.

AT: Zimmermann que tem uma ópera fabulosa...

HH: Die Soldaten. A ópera mais complexa que existe no mundo.

AT: Portanto Zimmermann é uma referência.

HH: Sim, eu sinto-me muito próximo dele que é um muito, muito grande compositor. Eu gosto muito da música dele mesmo que não me sinta influênciado por ele. Sinto-me muito mais influênciado pela música do passado.

AT: Na verdade o que constato é que contemporâneos nos seus concertos, só mesmo o senhor... Heinz e os clássicos!

HH: Sim. Eles são os meus contemporâneos. Tenho muito pouco contacto com a produção actual.

AT: Mas esteve em Darmstad...

HH: Só um ano.

AT: Mas como instrumentista...

HH: Sim mas nunca dei cursos nem nunca assisti a cursos. Só mesmo como instrumentista em 60 e 61.

AT: Vejo que trabalha muito com a voz soprano. Bom... com as vozes. Com as vozes.

HH: A voz é uma fonte inesgotável de inspiração e eu estou muito ligado à vocalidade que é uma música corporal, quase biológica. A voz é o mais belo instrumento.

AT: Mas compõe primeiramente a parte da voz e faz a instrumentação depois?

HH: Se se escreve rápidamente anota-se sobretudo a voz e pouca coisa à volta. Ao reler essa parte tudo o que tinhamos imaginado volta como se de uma rememoração se tratasse. No segundo ciclo de Trakl concentrei-me sobretudo na voz. Mas foi escrito num ou dois dias e depois fiz a parte orquestral. Mozart escrevia sómente o primeiro violino e o baixo cifrado. O resto para ele era um trabalho de copista feito a partir da sua memória prodigiosa.

AT: Tirando Bartók e Berg quais são os seus compositores fundamentais?

HH: Eles são os meus guias espirituais pois eu fui educado por Sándor Végh. Sinto-me muito próximo de Bartók que fez uma música muito próxima da linguagem e do corpo, extremamente livre e ritmicamente muito rica. Uma música de facto enraizada no corpo humano e na terra. Não é nada de cerebral.
O outro é Alban Berg que representa o equilibrio ideal entre a sensualidade, a espiritualidade e... talvez o controle extremo... a ideia quase utópica de qualquer coisa construída com tamanha complexidade que ele aproxima-se quase do tao, da anarquia dentro da construção extrema. Aí Berg vai ao extremo búdico de esgotar um material completamente, até ao fim.

AT: O primeiro ciclo de lieds que tocou com a orquestra foi composto há 35 anos?

HH: Há 44 anos. Tinha 20 anos...

AT: Portanto anterior ao Pli selon Pli de Pierre Boulez.

HH: Sim. Nessa altura ainda não trabalhava com Boulez. É muito antes de Boulez.

AT: Ha!!! Muito antes de Boulez!

HH: Boulez tinha começado a escrever as Improvisations sur Mallarmé dois anos antes mas eu não tinha tido qualquer contacto com ele. Nesse tempo não era de todo influênciado por ele. Conhecia muito mal a sua música. Conheci-o em 60 exatamente após ter escrito aquele ciclo e nessa altura escrevi outra obra com poemas de Trakl que mostrei na aula de composição e que ele (Pierre Boulez) dirigiu na versão orquestral. Mas os lieds que refere não têm qualquer influência dele. Talvez tenham sido influênciados pelos op.5 e 6 de Webern e por Alban Berg. Básicamente pela segunda escola de Viena de após a primeira guerra. Pode-se dizer que muito da música contemporânea ressoa na poesia de Trakl que morreu em 1914, justamente durante o primeiro ano de guerra.

AT: O senhor é um grande intérprete, um conhecido oboísta. Crê que isso o conduziu com bastante facilidade à direcção de orquestra?

HH: Talvez... Para mim não é uma grande diferença...

AT: Além disso toca piano...

HH: Mas para mim dirigir é também fazer o que se faz com um instrumento. É uma outra abordagem para para mim a música é uma unidade. Se sou intérprete ou chefe para mim, interiormente não há diferença. É como um equilibrio numa balança as várias actividades em música que para mim é uma só coisa indivisivel.

AT: Isso inclui a composição.

HH: Naturalmente. Isso está talvez no centro de tudo. Eu já escrevia música muito antes de ser conhecido como instrumentista.

AT: Então foi primeiramente compositor e depois intérprete?

HH: Aos dez anos começei a compôr mas nessa altura já tocava oboé e piano.

AT: Aos dez anos.

HH: Sim. E agora foram publicadas algumas das minhas peças que escrevi quando tinha 16, 17 anos. Agora que já sou idoso posso publicar aquilo que me parece ter interesse e personalidade para ser publicado. Coisas bem anteriores a esses ciclos do Trakl que escutou.

AT: Verifiquei que não dá uma impotância particular ao oboé nas suas obras. Um instrumento que conhece bem...

HH: Talvez porque o oboé não tem segredos para mim... Para mim compôr é um trabalho de descoberta. Tento ir ao extremo de cada instrumento do qual me sirvo, de lhe arrancar todos os segredos... O oboé é um instrumento que me inspira muito pouco. Nos anos 60 fiz um grande trio para oboé, viola e harpa que é uma das peças que considero essencial daquele periodo. Depois escrevi também uma espécie de concerto para oboé, côro, orquestra e alto-falantes onde o oboé é como um cantor que canta com o côro e grande orquestra. Depois escrevi peças a que chamei "études" para multifónicos para um volume sobre técnica contemporânea, o estudo para oboé foi criada para ser a peça obrigatória de um concurso em Genéve. Nunca foi música que escrevesse espontâneamente. Foram peças de circunstância. Sinto-me mais próximo dos instrumentos de cordas, do clarinete, da flauta, também da trompa, porque são instrumentos que têm uma escala dinâmica muito mais rica que o oboé que está sempre limitado nos extremos dos pianíssimos e dos fortíssimos. Também está limitado na tessitura. Por isso procuro instrumentos que ultrapassam o meu próprio limite instrumental.

AT: Lembra-se disto(os concertos para oboé de Maderna em cd interpretados pelo próprio Holliger)?

HH: Esse é um compositor que gosto muito. É uma música de uma extrema liberdade. O terceiro concerto, em meu entender, é sómente interpretável por um compositor. Não é uma música para um instrumentista. É preciso saber-se inventar pois a música só está parcialmente escrita. O essencial passa-se na espontaneidade, na improvisação. Para esse registo do terceiro concerto fizemos quatro versões sem qualquer corte. A mais longa tinha 27 minutos e a mais curta 18 minutos. Depois escolhi essa que está no disco. Não tem um só corte porque não se pode refazer a mesma coisa. Maderna é um compositor que me fascina muito pois tem as mesmas exigências para o ouvido humano, um ouvido absolutamente mágico pois a maneira como ele orquestra... Eu sinto-me muito próximo pois para mim tudo deve ser orientado pelo ouvido, tudo deve ser verdadeiramente controlado pela escuta. Eu escuto tudo numa grande orquestra, mesmo as notas falsas mas isso parece-me que não existe em muitos compositores contemporâneos que perderam a escuta... Eu aprendi isto com Boulez que tem um ouvido miraculoso. Fomos de tal maneira treinados a desenvolver a audição...

AT: Gosta da música dele?

HH: Naturalmente...

AT: Mas ele já não escreve...

HH: Sim. Mas aprendi muito mas essencialmente ao nível técnico. O colocar em partitura, a orquestração... nada ao nível expressivo ou mesmo formal. Aí não fui influênciado por ele mas fui influênciado pelo seu controle acústico de todos os aspectos. Isso foi muito, muito importante.

AT: E como maestro?

HH: Tive algumas lições com ele há 40 anos mas nessa altura não pensava sequer em dirigir. Teve muitos aspectos que me impressionaram. Mas a música que gosto mais como Schumann, Haydn, Mozart é estranha ao universo de Boulez. Em Alban Berg e em toda a música vienesa que interpreta e que é uma música muito emocional, Boulez alcança a emoção pela elegância, pela clareza formal. Não pelo contacto corporal e biológico com essa música.

AT: Quais as orquestras da actualidade que prefere?

HH: Várias. Trabalhei muito com a Orquestra de Câmara da Europa que para mim é a melhor orquestra que existe no mundo. Estão com dificuldade em manter esta orquestra... É lamentável. Nesta orquestra todos os músicos são também grandes solistas e no conjunto é uma orquestra de equipe. Esta orquestra fez todos os discos com Harnoucourt, por exemplo.

AT: Conheço-a muito bem e é de facto o top como orquestra de câmara. Mas disse que vai acabar?!

HH: Não exatamente mas eles fazem muito menos concertos. Estão com problemas financeiros.

AT: Uma orquestra como esta está em dificuldades para continuar?!

HH: Sim. Há muitas coisas boas que estão em dificuldade. O melhor côro do mundo em Stutgard está em vias de acabar por causa dos políticos.

AT: Qual é o côro?

HH: É o Côro da Rádio de Stutgard que é um dos dois melhores côros do mundo na actualidade. Muitas coisas vão mal. As casas de discos estão muito mal. A Phillips morreu e as grandes casas não fazem repertório interessante. Por isso a Orquestra de Câmara da Europa não pode continuar a sobreviver das gravações de cd's. As pequenas editoras não podem pagar muito... Há muitas coisas boas que estão em perigo...
Também trabalho muito com a Orquestra da Rádio de Stutgard... Com ela faço muitos, muitos concertos. Trabalho regularmente com a Orquestra de Baden-Baden. Também com a WDR e com a Orquestra da Rádio Bávara. Existem muito boas orquestras. Na Suiça há uma que é muito, muito boa, a Orquestra da Tohnalle de Zurich.

AT: O Harnoucourt trabalhava muito com essa...

HH: Era com a da ópera que é outra e que também é muito boa.
Mas eu não gosto de distribuir notas pelas orquestras e pelos compositores... O que conta é o que cada um faz. Cada um faz o que pode na música.
A única coisa que conta na arte é a sinceridade. Não fazer "teatro" e "show business"... A arte é qualquer coisa de existêncial. Faz-se arte para sobreviver. Para não se morrer.

AT: Filosofia ou religião?

HH: As duas. A arte é uma coisa tão séria que não se pode deixá-la entregue ao "business".

AT: É bem verdade que mundialmente as grandes casas de discos determinam muito...

HH: As que ainda não acabaram são escravas das multinacionais. Bmg e outras do género são dinosauros que têm a cabeça muito longe do corpo. São empresas que sómente querem fazer dinheiro. Já não têm qualquer relação com as editoras e casas de discos que compraram. Estas multinacionais tanto vendem coca-cola como cd's de música clássica. Para eles é mais um produto que comercializam. É a morte da humanidade. Em 50 anos os jovens não cantarão mais, não conhecerão nada para além do "bum-bum-bum" que estas multinacionais lhes oferecem. A música-máquina feita por robôts...

AT: Mas, por exemplo, nos anos 60 os jovens estavam loucos pelos Beatles e pelos Stones e a música clássica esteve sempre em grande forma e expansão...

HH: Mas esses faziam música! Até o Bério chegou a orquestrar músicas dos Beatles. Mesmo o Jimmy Hendrix fazia música avant-gard. Nada disso tem a haver com a música neandertal feita por gente sem cérebro! Já não há poesia, não há nada. Nessa altura havia grandes poetas. Bob Dillan fazia grande poesia. Actualmente é o agh, aghhh... É a música dos imbecis. Peço desculpa de ofendo alguém mas é a verdade.

AT: Mas na chamada música clássica existem jovens que continuam a compôr...

HH: Por vezes numa via sintética e artificial, mantidos por sponsors mas com grande falha na ligação à história e aos grandes compositores. Se formos ver os estudantes das universidades eles escutam o "bum-bum-bum".

AT: Mas nas escolas superiores de música e nos conservatórios...

HH: Pois. Mas estamos a produzir músicos que depois não terão um público. É triste. Muito triste.

AT: Veremos. Eu espero que isso se altere.

HH: Vemos isto em todo o lado. Na indústria, os directores são gente que não muda. São ratos cinzentos que só pensam no dinheiro, inter-cambiáveis por outros ratos cinzentos parecidos. Já não há personalidades e os políticos são gente sem qualquer cultura. Antes havia gente de grande nível. Claudel era cônsul de França em Buenos-Aires. Neruda era o embaixador do Chile em Paris. E agora são gente...

AT: Sim, estou de acordo que os imbecis estão no poder.

HH: Há um vazio de grandes personalidades. São os maleáveis despersonalizados e desprovidos de côr que funcionam ao nível do poder no registo desta sociedade de loucos e incultos. Encontra-se muito pouco de originalidade, de individuos que possuem uma singularidade.

AT: Vamos esperar que isto mude... Foi um muito, muito grande prazer ter tido esta conversa interessante e inteligente com uma personalidade como o senhor que é um dos meus oboístas de eleição e que fez esta interpretação dos concertos de Maderna que é a minha preferida.