2004/07/28

A música inscreve-se na eternidade

Um dia após finalizar uma impressionante integral das obras para piano de Chopin, fui encontrar o pianista no hotel de Sintra onde a produção do festival o alojou na companhia do seu "staff".

Devo desde já assinalar que se trata de uma entrevista fundamental tanto para intérpretes como para compositores e estudantes de composição. El-Bacha não é simplesmente o protagonista do grande acontecimento desta edição do Festival de Sintra e - em meu entender - da temporada musical portuguesa de 2003/2004. É um intérprete que se preocupou em estudar profundamente análise e composição musical com "grandes mestres" como se referiu aos seus ex-professores de harmonia e contraponto, intérprete este dotado de conceitos estéticos muito pessoais e fundamentados que sem necessidade de grandes delongas põe totalmente em causa o conceito "pós-moderno" do "interessante" em arte.

Para além de toda e qualquer divergência em relação ao que o pianista disse no que toca à música contemporânea, esta entrevista é uma viagem à alma de um grande músico, de um ser humano íntegro que não hesita em "saltar" à defesa de uma colega pianista que eu - superficialmente e fazendo eco de um certo senso comum "erudito" - classifiquei de "superficial e vedeta", um artista com uma sensibilidade muito personalizada assente em concepções estético/interpretativas sólidas e inteligentes.

Álvaro Teixeira: Gostaria de saber a sua opinião sobre a escola de piano francesa. Eu tenho vários registos de históricos como Cortot e Samson François onde fica patente a debilidade técnica destes intérpretes. Pelo contrário, como todos puderam testemunhar na sua integral, você não parece padecer desta limitação. Que mudou na escola francesa de piano?

El-Bacha: Você não deveria comparar os registos feitos nessa época com os de hoje mas compará-los com outros registos da mesma época feitos noutros países.
A técnica de gravação evoluiu permitindo corrigir erros com toda a facilidade. Hoje é possivel substituir-se uma só nota, coisa impensável naquela época. Actualmente fazem-se autênticas montagens em estúdio!
Mas isso é só um dos aspectos. O nível técnico dos intérpretes evoluiu. O domínio instrumental desenvolveu-se enormemente nos conservatórios de todo o mundo. Hoje quando se escutam os jovens nos concursos internacionais percebe-se que revelam menos dificuldades técnicas que pianistas como Cortot.
Tenho de lhe dizer uma coisa: não acredito que alguém como Cortot estudasse piano todos os dias. Ele não vivia exclusivamente para o piano. Ele escrevia, dirigia, e provavelmente não tinha grande metodologia de trabalho. Quando Cortot queria tinha uma sonoridade excepcional, além de que tinha uns dedos fabulosos. Simplesmente não era um pianista empenhado.
Com Samson François é parecido. Mas ele tinha um grave problema de alcoolismo! Ao ponto de no final da sua carreira tocar visivelmente mal e ser assobiado pelo público. Apesar de tudo Samson François foi um pianista inspirado.

AT: Lembro-me que a gravação dos nocturnos de Chopin por este pianista são dos registos mais belos que existem destas peças. São os meus preferidos a seguir ás últimas gravações de Vlado Perlemuter. No entanto as baladas gravadas por Samson François são bastante más...

E-B: Não se esqueça que un registo é só um par de momentos na carreira de um artista. Por vezes o pianista não está contente com o resultado mas assinou um contrato que estabelece prazos...
Eu avalio um artista pelo que ele fez de melhor e Samson François, apesar de tudo, foi um grande pianista.
Agora volto ao tema da escola francesa. Quando se trata de um génio da interpretação a escola não tem assim tanta importância porque um génio é-o a tempo inteiro e desde sempre. Não se pode ensinar a inspiração e o talento. Não se pode ensinar a intuição musical. Pode-se ensinar técnica, análise e transmitir experiências, não o talento. Por isso eu ponho em questão o principio das escolas, sobretudo hoje que os professores fazem "master-classes" em todo o lado e os jovens pianistas antes de começarem a carreira já viajaram a vários paises e já trabalharam com vários mestres.
O que pode ser uma debilidade do que podemos chamar a escola francesa é talvez o primado da fantasia em deterimento de uma análise profunda das obras. É talvez isto que caracteriza a escola francesa tradicional.
O que caracterizará a escola russa, por exemplo, é a quantidade de emoção e o facto da interpretação ser uma vivência profunda. Por vezes acompanha-se de excessos, muitas vezes insuportáveis que conduzem a uma total falta de controle e equilibrio, resultando numa falta global de estética.
Efectivamente temos de reconhecer que há características das escolas... A escola alemã é muito séria e exige que a interpretação seja bem definida e pensada. Pode ter o defeito de uma certa frieza se não há inspiração e genialidade no intérprete.

AT: Mas na actualidade não existem grandes pianistas alemães...

E-B: Muito recentmente apareceram uns jovens alemães que se fizeram notar no concurso Elisabeth. Em 2003 o primeiro prémio foi para um alemão. Não sei o que eles farão mais tarde...
Tivémos o periodo de Kempf e Schnabel...

AT: Que revelaram fortes debilidades técnicas também. Schnabel nalgumas gravções ao vivo é simplesmente um desastre!

E-B: Numa gravação ao vivo tudo pode acontecer. Eu não me quero comparar mas é reconhecido e é verdade que ao nivel técnico estou acima da média, mas é evidente que naquela época eram menos preciosistas e menos atentos ao detalhe. No entanto Schnabel tinha uma grande técnica.

AT: Kempf revela claramente problemas técnicos. Até nas gravações em estúdio!

E-B: Neste caso tenho de lhe dar razão.

AT: Claro que tem...

E-B: Ele era magnífico nas sonoridades que conseguia nos mezzo-fortes. Mas quando tinha de fazer um escalonamento gradual e imperceptível nos crescendos, quando tinha que tratar as curvas dinâmicas, as nuances, aí era evidente o que acaba de afirmar.

AT: Problemas ao nível mesmo da dedilhação... Nas sonatas de Beethoven por exemplo.

E-B: Sim mas temos de nos lembrar que se trata de uma gravação numa idade avançada. No entanto a sua inspiração continuou intacta o que nos leva a secundarizar as suas debilidades técnicas. Temos de nos lembrar das execuções de quando era jovem. É isto que eu penso. Há épocas de um pianista e as interpretações não se mantêm sempre iguais.

AT: Lembro-me de um recital de Richter em que ele deu demasiadas notas erradas... Mas apesar disso conseguiu ser genial!

E-B: Richter faz parte de outra geração. De uma geração que se preocupou em desenvolver a perfeição e que coincidiu com a idade de ouro do disco.

AT: Mas ele sempre recusou qualquer tipo de intervenção em estúdio. Nos "Tableaux d'une exposition" que foram gravados ao vivo no conservatório de Moscovo, ele começa com um erro que não seria dificil de corrigir em estúdio. Mas ficou lá!

E-B: Vou-lhe dizer uma coisa: eu tenho uma maneira de gravar. Nunca gravo menos de 15, 20 minutos de cada vez. Frequentemente gravo peças inteiras sem interrupção.
Quando registei a Hammerklavier, toquei-a de uma só vez.
Eu acho que numa gravação em estúdio tem-se que procurar um equilíbrio entre o concerto ao vivo e o conforto do estúdio. Começo por gravar um pequeno trecho sobre o qual eu e o engenheiro de som fazemos os ajustes e as regulações necessárias para que quem adquire o cd tenha um bom som sem ruídos ou interferências. Depois começamos a fazer gravações longas, por vezes obras inteiras. Jamais pequenas partes pois trata-se de conservar a "essência" e o impulso interior da obra que corre o risco de se perder totalmente quando se utiliza o método da colagem de pequenos pedaços que espartilham a peça.
Se se quer conservar o discurso musical e a vida interior da obra, como acontece ou deve acontecer em concerto, então temos um grande e sério trabalho por parte do intérprete.

AT: Tenho de lhe dizer que fiquei com a impressão que você está mais à vontade nos movimentos rápidos e nas pequenas estruturas.

E-B: Isso acontece-me frequentemente. O piano tem um som que "morre". Não se prolonga no tempo como se pode fazer com os metais e as madeiras, por exemplo. Nestes instrumentos o mesmo som pode mesmo fazer um crescendo. No piano, um som produzido por um único ataque tem uma vida curta. Um movimento rápido não nos propõe que sons curtos o que no limite é mais fácil. Quanto mais um movimento é lento maior a dificuldade de evocar o "canto" pois é necessário inventar um arco suposto por uma continuidade que não existe. Nós os pianistas temos de inventar um sopro de continuidade utilizando martelos que percutem. Esta dificuldade existe em todos os pianistas.
Mas devo-lhe dizer que em muitos recitais estive totalmente à-vontade em movimentos muito lentos. Deixe-me lembrar...
Por exemplo: tive um recital que começou com os nocturnos op 37. O primeiro desses nocturnos que está em sol menor, tem no meio uma longa passagem em acordes muito lentos que exigem uma concentração religiosa. Foi um momento difícil mas consegui e o público reagiu a isso com grandes aplausos.
Mas não nego a facilidade que tenho de fazer com um à-vontade pouco raro passagens muito difíceis. Eu sei como as preparar. Como as trabalhar. Que dedilhação escolher em função daquilo que conheço da dedilhação utilizada pelo compositor e da sua maneira de interpretar as obras que criou.
Penso muito em tudo isso antes de escolher uma das dedilhações possíveis. Por vezes as dificuldades estão onde não são nada evidentes...
Também tenho uma maneira serena de me confrontar com as dificuldades técnicas. Não me permito entrar em tensão porque isso vai-se repercutir ao nível muscular.
Alguns pianistas, apesar de terem uma boa técnica, quando se confrontam com uma passagem difícil têm mêdo e reduzem ligeiramente o andamento. Sem querem ficam com a musculação tensa e a interpretação resulta menos conseguida.
Pode ser que voce tenha razão ao referir-me como debilidade a propensão para os movimentos rápidos, mas posso dizer-lhe que neste momento não sinto qualquer dificuldade técnica de vulto em nenhuma das obras que existem para piano na actualidade.
E vou-lhe dizer outra coisa talvez mais importante: o fundamental é estar-se à altura da inspiração.
Por vezes, quando há ruídos ou o piano não está bem equilibrado, a inspiração é um pouco bloqueada. Não sei se tudo isto é claro para si...

AT: Claro que sim. Tem consciência que os seus recitais do dia 13 foram nitidamente superiores aos dos outros dias?

E-B: Dia 13...

AT: Os estudos op 25 e os Prelúdios...

E-B: Superiores para si? Teve essa percepção?

AT: De forma muito nítida.

E-B: Não sei... Na verdade quando toco os Prelúdios

AT: e os estudos op 25...

E-B: há sempre uma muito boa reacção por parte do público. Se quiser pode dizer que são pequenas peças...

AT: Sim. E movimentos rápidos, na generalidade.

E-B: De acordo. Mas não fiquei muito contente com a minha interpretação do estudo numero 6, que é rápido... Isso passou-se porque não tinha o piano que necessitava.
O piano de Chopin era muito leve e "glissant". No entanto não gostaria, neste momento, de fazer uma integral num piano da época porque não teria a qualidade sonora, a riqueza tímbrica e a precisão mecânica dos pianos modernos.
Nesta integral tive o problema de um teclado que nalgumas zonas era demasiado duro o que colocava problemas de "toucher" e interferia não só com os ataques mas também com as dinâmicas.
Mas... Então considera-me mais vocacionado para as pequenas formas...
Então diga-me o que para si seria algo de difícil para mim. O "largo" da terceira sonata, por exemplo?
Qual o momento que achou menos conseguido na minha interpretação? Algum problema de concentração?

AT: Algo assim... Por vezes parecia um pouco perdido no interior de algumas peças... Em algumas Mazurkas por exemplo...

E-B: Ontem... Estou de acordo consigo para a primeira das Mazurkas op 56. Eu buscava a minha sonoridade e não a encontrei.
As últimas obras de Chopin exploram muito o médio e o grave. Neste piano (e isso perturbou-me ao logo de toda a integral) estes registos têm de ser bem atacados senão soam debilmente. Quiz tocar essa Mazurka de forma leve e delicada nesses registos e o som não saíu como eu desejava. Também estava já sob a fadiga dos dias passados...
Uma integral é algo denso e exigente. Provavelmente há coisas que vou modificar ao longo do tempo...
Mas se fala de outras Mazurkas diga-me por favor.

AT: O problema é que só anotei aquilo que achei excepcional... Tive várias vezes a sensação de me sentir perdido em obras que pensava conhecer bem... Isso por causa dos seus tempos, das suas acentuações e algumas suspensões...

E-B: Compreendo... Não toquei como esperava que eu tocasse. Mas devo-lhe dizer que eu faço parte daquela classe de pianistas que quase não utilizam o "rubato" e isso origina críticas. Não é para responder a essas críticas mas

AT: Faz paragens! Paragens que me deixaram surpreendido.

E-B: Está a falar da Polonaise-Fantasia? Não nos podemos esquecer que é uma improvisação onde nada deve estar previsto à partida e tudo deve surgir da vontade do momento. Por isso o público não pode seguir o intérprete e não pode esperar que ele faça isto ou aquilo.
Noutras obras, eu sei que fiz uma paragem importante no desenvolvimento do primeiro andamento da terceira sonata, onde há uma grande e estranha modulação. Se não se faz aquela paragem essa importante modulação vai passar despercebida.
Situações destas são totalmente voluntárias. Mas a maior parte do tempo , o que lhe posso dizer é que me criticam por ser demasiado regular.
Mas tenho de lhe dizer que eu não toco um compasso com o mesmo ritmo que o precedente. Eu sigo o desenvolvimento das vagas de expressão. Se a expressão deve acelerar eu acelero... É qualquer coisa intuitiva mas em permanente movimento e eu creio que depois de tudo o que se testemunhou do rubato de Chopin enquanto intérprete das suas composições, daquilo que os seus contemporâneos testemunharam, tem-se de ter em conta as afirmações de que o rubato de Chopin era natural e discreto ao ponto de muitos dizerem que ele não utilizava "rubatos".
Mas é verdade que voçê não falou do "rubato" mas de paragens. Só lhe posso dizer que essas paragens são raras.

AT: Não falei de "rubato" até porque Vlado Perlemuter que eu admiro, quase não o utiliza ou utiliza-o discretamente como acaba de referiri a propósito de Chopin. Para mim O "rubato" não tem pertinência. Mesmo o Sokolov que é paradigmático não o utiliza assim tanto...

E-B: Sim. Sokolov é seguramente um imenso pianista. Ouvi-o um dia quando por acaso liguei a televisão e vio-o a interpretar as últimas Mazurkas. É absolutamente musical mas não posso compartilhar a opinião que faz um rubato discreto. Pelo menos naquele registo tocou com muito "rubato".
Isso não é uma crítica a Sokolov. É só para lhe dizer que é dificil tocar Chopin com demasiado regularidade. Segundo o momento faz-se um "rubato" ou outro.
Se o "rubato" surpreende é porque talvez não seja motivado naturalmente. É necessário que o "rubato" não seja notado. Quando o público não percebe o rubato é porque ele é natural.

AT: Excluindo os pianistas da escola francesa, quem são para si os mais marcantes da actualidade? É quase uma pergunta incorrecta...

E-B: Não. De todo! Quando há talento há lugar para todos. Não se é obrigado a escutar sempre os mesmos. É como com as flores: podemos oferecer diferentes flores igualmente belas.
Na música somos todos diferentes e cada um deve impôr-se pela sua excelência.
Deve-se dar sempre o nosso melhor mas não se deve ter como objectivo ser melhor que este ou aquele.
É por isso que eu não escuto muitos os meus colegas, por isso a minha resposta vai sofrer dessa limitação.
Em todo o caso, entre aqueles que eu pûde escutar, há dois que me marcaram entre os jovens pianistas franceses: Hélène Grimaud e Phillipe Jossiano.
Este último ganhou o segundo prémio no concurso Chopin em 95, creio. É um pianista que tem muita sensibilidade, que tem verdadeiramente a sua própria maneira de tocar com muita nobreza e muito sentimento. Quando há sentimento e nobreza temos Chopin.

AT: No que concerne a Grimaud não a acha uma vedeta superficial?

E-B: A mim não me interessa o que fizeram dela al nível mediático. A mim interessa-me simplesmente a música. Eu ouvi-a quando ela tinha 16 anos

AT: Agora tem 30!

E-B: Eu sei. mas ouvi-a também recentemente. Quando a ouvi quando ela tinha 16, percebi imediatamente que ela era dotada de uma enorme inteligência musical que é provavelmente a sua maior qualidade.
É verdade que me aconteceu ouvi-la por acaso na rádio antes de saber que era ela e achei a interpretação algo dura. Fiquei intristecido por ela ter evoluído daquela maneira.
Mesmo assim devo dizer que recentemente ouvi-a tocar algumas peças de Brahms e Rachmaninof e que apesar de não ser uma grande técnica sente-se que é uma grande música. Ela consegue emocionar-me.

AT: Conhece pianista portugueses?

E-B: Quem?

AT: Há dois muito conhecidos... Maria João Pires

H-B: Ha!!!

AT: e Artur Pizarro.

H-B: Não conheço Pizarro mas Pires é um monumento! Não falei nela porque estávamos a falar de pianistas franceses ou da escola francesa.

AT: Pois... De facto a minha questão inicial foi excluindo os franceses... Mas não importa. Se quiser continuar a falar...

E-B: Hã sim? Pois Pires é um monumento. Eu não conheço as suas interpretações de Chopin... Melhor: ouvi uma vez um Chopin por ela e foi mágico! como já percebeu evito ouvir outros intérpretes a tocar Chopin pois procuro partir do vazio ou quase.
Eu tenho uma grande estima pela grande artista e agora que fui nomeado professor na Chapella Reine Elisabeth na Bélgica, já a convidei para fazer "master-classes" com os meus alunos que são uma classe especial de pianistas em pré-carreira. Os dois pianistas que propûs logo no início foram Pires e Freire que já aceitaram.
Há também o imenso pianista que é Christian Zimmerman. Maurício Polini que foi um choque quando escutei um registo dele aos quinze anos...

AT: Ás vezes demasiado técnico...

E-B: Sim, sim... Mas com uma grande inteligência musical e uma enorme sensibilidade.
Há sempre qualquer defeito. Não se pode esperar a perfeição!
Mas há aqueles que conseguem um equilibrio como Dino Lipatti...

AT: Só o ouvi em disco...

E-B: Sim. Já há muito que não está entre nós. Eu também só o ouvi em disco. É fenomenal em todos os planos: técnica, inteligência, compreensão, inspiração...

AT: Pode-se falar de uma escola italiana de piano ou nem por isso? Michelangelli, Lipatti, Pollini...

E-B: Lipatti era Romeno.

AT: Claro. Que estupidez a minha!

E-B: Eu creio que há uma sensibilidade mediterrânica e eu integro-me nesse género de sensibilidade. Mas não é uma escola. Existe uma sensibilidade e uma cultura mediterrânicas... Talvez por isso já me compararam a esses pianistas. Não ao Michelangelli mas ao Lipatti e ao Pollini.
Mas já me compararam a outros como Richter e Horovitz, o que me espantou. E até a Samson François!

AT: Quem foi o seu professor?

E-B: Em Beirute foi Zvart Sarkissian. Ela estudou um pouco com Marguerite Long. Depois estudei com Jacques Février.... Finalmente com Pierre Sancan.

AT: Portanto a escola francesa...

E-B: Pierre Sancan foi o primeiro prémio de Roma em composição. Não era sómente pianista.
O que muito me engrandeceu foram as classes de análise, harmonia e contraponto que frequentei no conservatório com grandes mestres. Isso ajudou-me a pensar como interpretar uma composição, como encontrar as cores harmónicas... O conhecimento da harmonia é fundamental!

AT: O que se passa com a música contemporânea? Creio que os pianistas não gostam muito de interpretar obras contemporâneas...

E-B: Depende de que música contemporânea. Eu toquei um pouco de Schoenberg e de Webern...

AT: São já dois clássicos...

E-B: Você pensa que quando se faz um programa com esses compositores se tem a casa cheia?
Para a maior parte das pessoas Schoenberg é difícil de escutar!

AT: Eu estive num concerto no teatro do Chatelêt, dirigido por Simon Rattle em que a primeira parte foi o concerto para piano de Schoenberg e na segunda foi o canto da terra de Mahler. A casa estava cheia e o público adorou! um público que não era o "público tipo" da música contemporânea...

E-B: Sim. Mas em Paris arrisca-se! para mim Schoenberg entrou na história mas não creio que ele tenha entradode facto na música clássica. Falo da música que é escutada pelo "grande público" e daquela que se ouve instintivamente quando se chega a casa.
Vejo de quem voçê fala. Pendereki, Bério, Ligetti, Xenakis, Boulez, Stockausen...

AT: E os mais jovens...

E-B: Por exemplo?

AT: Hum... Brian Ferneyhough, por exemplo.

E-B: Dusapin...

AT: Esse já é quase um clássico em França.

E-B: Sim.

AT: Falou-me em compositores instalados. Na história e nas instituições...

E-B: Sim, mas...

AT: Stockausen com os seus Klavierstück que são interessantes para um pianista... Eu não gosto de Stockausen mas essas peças são boas para os pianistas. Para uma primeira parte de um recital. Por não Beethoven na segunda parte?

E-B: Sim. Há pianistas que o fazem.
Mas há que ter muita atenção: a música não é para ser interessante (sublinhado do editor) .
A música, para mim, é feita para exaltar a vida. A felicidade de se viver.

AT: É uma religião para si?

E-B: Mas sim! Sem dúvida.
A música é sagrada. Não é uma diversão. Não é uma inteligência de invenção e construção (sde) .
Para mim a música é um canto eterno.
De acordo: cada um capta-a de acordo com a sua personalidade e de acordo com a sua época. Mas para mim alguém como Monpou diz-me bem mais que alguém como Stockausen.
É também uma questão de tempo e de escolha. Nós pianistas temos muito repertório por onde escolher. Muito e bom repertório. Fazemos as escolhas que nos vão fazer melhor e que vão permitir o nosso crescimento.
Se eu fôr tocar o que é "interessante" na música contemporânea não terei tempo para trabalhar Beethoven, Schuman ou Ravel, os "grandes" que são indispensáveis à minha existência.
Ocasionalmente faço uma experiência. Não sou fechado. Já estreei obras contemporâneas em Paris e Bruxelas. Mas eu conheço também as limitações desta música porque é uma música que frequentemente se satisfaz em ser interessante e inteligente (sde) .
Como já lhe disse, tenho uma definição de música. Podemos falar de construção sonora, podemos falar de inteligência sonora mas é por vezes um pouco abusivo dar o título de música áquilo que não tem nem melodia nem tempo nem ritmo nem harmonia nem contraponto nem estrutura. Porque antes de tudo, Beethoven mudou a história da música mas manteve estes parâmetros. Prokofief também mudou, foi um revolucionário, mas também conservou estes parâmetros que se não existirem talvez tenhamos que falor de outra coisa que não música.
A prova é que conheço muitos "músicos" que não sabem nem uma nota e que, com computadores, produzem um mundo sonoro prodigioso. para mim isso não é música.
Se Beethoven se fartou de trabalhar e estudar para fazer a sua primeira sinfonia não é um qualquer que chega hoje ao pé de mim e me diz "aqui está uma sinfonia" que é um músico. Isso é burlar-se dos verdadeiros músicos. Eu estou em revolução em contra de chamar a isso música.
Isto não quer dizer que eu não admire esses trabalhos, da mesma maneira que posso admirar a construção de uma casa. Mas se ela não fôr habitável como vamos dizer que é uma casa? Podemos talvez dizer que é uma escultura...

AT: Conhece por exemplo as peças de piano de Ligetti?

E-B: Claro que sim. Os estudos por exemplo.

AT: E acha que isso não é música?

EB: São fabulosos! Mas eu não gosto. Onde está o canto? Há alusões mas isso não é canto. É uma recordação do canto.
Claro que isto não tira valor a essas obras. Importa é encontrar uma denominação adquada.
Para mim uma música pop é mais música, ainda que da má, que esse género de obras contemporâneas. Porque têm melodia e estrutura, ainda que simples.

AT: Você parte de pressupostos que não se podem universalizar. O que é a melodia? O que é o canto? Xenakis e Ligetti entendem a música como um universo de deslocações e densidades sonoras.

E-B: Sim. Mas a quem é que comunicam isso?

AT: Aos seus públicos evidentemente. Públicos esses que também se emocionam. Vi chorarem na ópera "Le grand macabre"!

E-B: Sim. Mas foi o tema que os levou a chorar.

AT: Como pode fazer uma afirmação dessas?

E-B: Eu trabalhei obras de grande complexidade como o Pierrot Lunaire de Schoenberg e a Paixão Segundo São Lucas de Pendereki.
Os estudos de Ligetti, esses conheço-os como as palmas da minha mão. Não me pode acusar de falta de conhecimento, de falta de análise dessas obras.
Se existe um público que considera essas obras música, eu retiro-me. Não faço parte desse público.
Eu não quero retirar da música aquilo que faz parte dela mas a música evoluiu num sentido tão radical que muita gente, muita gente mesmo, considera que isso já não é música.
Não o espanta que a maior parte dos pianistas, dos grandes pianistas recusem as obras contemporâneas? Cite-me grandes pianistas que as tocam. Pires toca música contemporânea? Brendel toca-a? E Perahia? Todos eles grandes músicos...

AT: Pollini trabalhou muito com Nono.

E-B: Isso fazia parte da sua personalidade. Da sua militância.

AT: Emmanuel Ax toca música contemporânea.

E-B: Eles permitiram ás pessoas - e foi esse o papel que assumiram - de conhecerem, na sua melhor forma, as obras contemporâneas para melhor as poderem julgar. Pollini quase que só fez música contemporânea com Nono. Um contemporâneo!
Eu não estou motivado sequer para tocar os Vingt Regards de Messiaen. Uma obra que é seguramente música da boa.

AT: Não gosto especialmente mas admitamos que sim. Que é "grande música".

E-B: Portanto eu não tenho tempo e não dou prioridade a este repertório. Se eu tenho tempo actualmente para trabalhar novas obras, irei escolher a 5ª Sonata de Prokofief e a sua 8ª.

AT: E Scriabin?

E-B: Toquei Scriabin e para mim é um compositor "tipo intelectual". Mesmo na sua fase romântica é pendentemente intelectual.

AT: A sua primeira fase é tipicamente romântica...

E-B: Não tanto assim. É como Liszt que é romântico e fez música de pendor intelectual e abstracto.

AT: A sonata para piano de Liszt é do melhor que o romantismo nos legou...

E-B: Toquei-a várias vezes. Mas digo-lhe francamente: para mim há mais de parecer que de ser.

AT: Para mim essa sonata é um monumento da música de todos os tempos.

E-B: Não para mim. A sonata em si menor de Chopin vai mais longe (sde) . Esta sonata vai bastante mais longe.

AT: Coisas diferentes...

E-B: São diferentes mas partimos sempre de uma sensibilidade determinada que como nós está delimitada pelo tempo e pelo espaço. Não é um julgamento absoluto. Tudo o que tenho dito não é um julgamento absoluto porque isso não existe (sde) .

AT: Mas, voltando à música contemporânea, vou-lhe dizer uma coisa: aqui em Lisboa há um público mais receptivo que em Paris. Lembro-me de ver em concertos no Ircam interessantíssimos, diga-se de passagem, diz ou quinze pessoas. Nós os que estávamos no curso e mais uns quantos conhecidos nossos. No Ircam que é uma das catedrais, se não mesmo "a catedral" da música contemporânea mundial! Creio, a fazer fé no que me disseram alguns amigos franceses, que o Ircam é detestado pelas quantidades que o estado francês investe naquela instituição, das quais só beneficia uma pequeníssima élite.

E-B: Não sei. Em todo o caso os média podem ter um papel no sentido de elevar o interesse pela música contemporânea e isso parece-me muito bem.
Mas o que lhe quero dizer é que o "pecado" de muitos compositores contemporâneos foi quererem a todo o custo fazer música nova. A novidade para eles não é comandada pela inspiração mas pela vontade. É a sua vontade de fazer história que comanda a inspiração e isso não resulta (sde). A vontade de ser original é maior que a necessidade interior de se exprimirem pela criação musical.
Quando eu era pequeno comecei a sentir a música como um grande amor, um grande sentimento que me preenchia. Se me tivessem dado a ouvir música contemporânea quando eu tinha quatro anos provavelmente hoje não seria músico.
Eu quero falar de compositores que tomando como modelo a Grande Fuga de Beethoven ou o final da segunda sonata de Chopin que é qualquer coisa de quase atonal...

AT: E as últimas peças de Liszt?

E-B: Ou as últimas peças de Liszt...
Quando se fala de composição não há que esquecer que Chopin após compôr a sua segunda sonata compôs um nocturno de uma enorme simplicidade. É necessário saber-se fazer as duas coisas.
O que eu contesto em alguns compositores que dizem ser da nossa época é o facto de não serem capazes de compôr uma melodia que alguém goste de cantar. Como com os pintores que se dizem contemporâneos e que são incapazes de fazer um retrato que leve as pessoas a olharem-no com gosto. Que se passa então? Vai-me dizer que sou reaccionário? Mas é necessário ser-se capaz dessas criações!

AT: Em Paris as exposições de arte contemporânea esgotam sempre. Todos os dias a abarrotar de gente. As pessoas gostam daquela arte.

E-B: Isso não é uma referência. Se um pianista vem ter comigo a tocar com os pés, os cotovelos e os braços, no final pedir-lhe-ei que toque uma escala e um andamento de uma sonata de Mozart. Se ele não fôr capaz dir-lhe-ei: obrigado por ter vindo mas pode ir embora.

AT: Evidentemente!

E-B: Quando eu digo "ser capaz" não significa que o artista tenha de estabelecer todo o seu estilo sobre uma escala, uma peça de Mozart ou na pintura de um retrato. Mas tem de ser capaz de fazer isto se foi educado para a arte.
Eis o que faz a diferença entre um verdadeiro artista e um qualquer que faz não importa o quê e se auto-intitula como tal.
Produzir ruídos e construções sonoras num teclado, qualquer imbecil o pode fazer.
Falo de extremos porque eu reconheço a imaginação e inteligência dos que são reconhecidos como compositores contemporâneos.
Mas não pensa que falta um pouco de modéstia a estes compositores contemporâneos reconhecidos, alguns dos quais voce já considera clássicos?

AT: Conheço poucos pessoalmente...

E-B: E Chopin quando tinha 20 anos? Com vinte anos Chopin já se tinha inscrito na eternidade (sde)!
A maior parte desses compositores contemporâneos que reconhecemos como inteligentes quiseram fixar-se na história antes de se fixarem na eternidade. A arte não pertençe à história: a arte pertence à eternidade!
Não é artista quem quer. Pode-se aprender muita coisa mas não se aprende a ser artista. Não se é artista porque se decide ser artista (sde) .
Deus decidiu que Chopin era um artista mas não creio que tivesse decidido isso para a generalidade dos artistas contemporâneos.

AT: Muito obrigado.