2004/09/13

Um festival de contrastes


Música Viva 2004

Festival de Música Electrónica e Electroacústica


Por Álvaro Teixeira




Felizmente o Miguel Azeguime conseguiu manter e desenvolver este festival que veio de alguma forma suprir o vazio deixado pelo fim dos Encontros de Música Contemporânea da FCG.
Portanto deixo desde já bem clara minha posição de apoio à (boa) continuidade deste festival que tem um papel e um lugar importante na vida musical portuguesa.


Após esta nota introdutória passarei à análise de alguns concertos e à elaboração de algumas opiniões em relação aos futuros festivais Música Viva.


Antes de ser "crítico" fui compositor e director de um grupo de música contemporânea que no seu tempo fez história e foi convidado para todos os programas de música da então RTP2, que eram programas de indiscutível qualidade. Isto para vos dizer que quando analizo uma obra contemporânea, mesmo que desconheça o sistema concreto que lhe subjaz (se de facto subjaz...), sei de que tipo de problemática estético-técnica estou a tratar. Por isso não procurem colocar-me no papel do "crítico" que escreve porque tem de escrever, ás vezes para dizer qualquer coisa com pouco ou nenhum sentido, pois para além do que já foi dito só escrevo quando quero e sobre o que quero.


Um dia ouvi um "crítico" que, num qualquer encontro internacional, dizia existirem obras que não merecem que se perca tempo escrevendo sobre elas mesmo que seja para as desconstruir face ao ouvinte/expectador desprevenido.

Na altura reagi com algum cepticismo pois ainda acreditava que toda a obra, pelo menos em música, era fruto de um labor sério de alguém que procura afinar concepções quer expressivas quer de estrutura, de alguém que busca o seu interior profundo na expressão musical. Claro que era um delírio. Todos sabemos que não é assim. Na entrevista com o pianista El-Bacha que podem encontrar nos arquivos desta página, assumi o papel do "advogado do diabo" com a consciência que o pianista tinha toda a razão. Perdeu-a a partir do momento que meteu tudo no mesmo saco. Há génios de musicalidade, talento, de inteliência conduzida pela sensibilidade, na música do século vinte e na contemporânea. Há também porcarias como as há em todas as formas artísticas. Há obras que são meras construções teórico-construtivas e que têm um interesse indiscutível mas ás quais alguns recusam (e têm esse direito) o estatuto de obra musical.


Vou começar pelo mais célebre: Pierre Henri. Um dos princípios da música electrónica era trabalhar com sonoridades não passíveis de serem produzidas pelos instrumentos convencionais. Outro princípio era a não identificabilidade auditiva do som original do qual se partia. Além de que dever-se-ia ter o cuidado de evitar "efeitos anedóticos": aqueles que são imediatamente referênciáveis a situações da "realidade" (tipo arrotos, ambulâncias, aviões que passam, etc).

Pierre Henri em "Le livre des morts egyptien" oferece-nos um conjunto de quadros entre os quais não se sente uma unidade estrutural. Já em "Pierres Réfléchies" usa a electrónica para espacializar sons de instrumentos acústicos. Quanto à estrutura talvez vocês a tenham inteligido...

Emmanuel Nunes: Um nome de peso da música contemporânea serial (pós-serial se lhe agradar mais...). Grund para flauta e electrónica em 8 pistas. Espacialização localizada: a cada altifalante corresponde uma parte de flauta. O compositor pródigo na utilização do espaço em concerto reduz-se aqui à utilização da electrónica como mero instrumento espacializador. Estrutura, seguramente que a há dada a obcessão de estruturação de qualquer bom serial (pós-serial...). O ouvinte é que não a entende (e para quê?). Resultado: uma monotonia intragável de mais de meia-hora (que pareceram duas), quebrada no final por um cluster berrante que seguramente terá uma função estrutural. Ninguém percebe a função musical daquele cluster. Mas para quê se tem seguramente uma função importante a nivel de estruturação teórica da obra?!


Outra "sumidade": Trevor Wishart. Aquele que quebrou o ambiente austero da espera silênciosa ("Tira lá a cabeça da frente que quero quero ver o altifalente da direita", podia-se murmurar pois quando se falava mais alto olhavam-nos com má cara). Conversou com o público explicando-lhe o que iria ouvir de seguida e este agradeceu.
Três obras de interesse relativo. "Two Women" foi talvez a mais interessante. A difusão sonora foi do próprio Wishart.



A Orquestra Gulbenkian, muito curiosamente, apresentou obras de históricos como "entrada" a longas e aborrecidas obras de compositores secundários, ex-alunos de Emmanuel Nunes.
Assim o genial Ligeti foi prato de entrada para o quase só conhecido em Portugal e nos "circuítos seriais" Enrique Macias. E Tristan Murrail a entrada para João Rafael com uma obra (Ode) estruturalmente bem pensada, como todas as de João Rafael, mas onde a musicalidade dificilmente emerge. Quanto à obra de Macias alguém disse que já tinha ouvido algo muito parecido em Boulez o que não é de espantar. Quero prestar aqui uma muito sentida homenagem ao ser humano que conheci ao longo dos anos em que nos cruzamos nas master-classes e concertos do seu "mentor", ser humano esse que nos abandonou prematuramente. Macias era uma pessoa afável, modesta, sensível e transparente o que é raro entre criadores que acreditam (ainda que delirantemente) que estão a re-escrever a história da música e da cultura. A vida nem sempre é justa ao privar-nos da presença de seres como ele.



Voltando ao "nosso osso", um dos grandes problemas dos "pós-seriais", que na realidade são seriais, é a incapacidade de quebrarem a continua e desesperante monotonia sonora das suas produções, ainda que se esforcem de obra para obra em encontrar novos sistemas de serialização que lhes permitam adquirir uma singularidade criativa. São poucos os que o conseguem e os que chegam aí nem sempre o fazem com obras que "toquem" de facto os músicos, os "críticos" e o público. Um problema sem resolução à vista...




O Ensemble Pythagore abriu o concerto com uma interessante obra de Kaija Saariaho, Cendres de 1988. A obra seguinte Ligne Furieuse de Christophe Ruetsch foi uma das obras mais ovacionadas. E justamente pois para além de interessante é uma obra onde a musica se expressa. Dois compositores que fazem história desvinculando-se da atrofiante tradição serial.

O mesmo não poderia dizer da obra do português António Chagas Rosa cujo talento é espartilhado por uma concepção serializante para a qual utiliza processos básicos que dão ás suas obras uma sonoridade algo arcaica para os tempos que correm. Este compositor que parece não padecer de ausência de talento não necessita de ficar espartilhado por uma suposta tradição serial da música contemporânea portuguesa. Recomendo-lhe o afastamento total de qualquer processo de serialização. Há outras formas de compôr. Ele pode e deve inventar a sua maneira de compôr.

As obras apresentadas na segunda parte (Pascal Gaigne, Bertrand Dubedout e Pierre Jodolowski) demonstram o beco com poucas saídas da música serial: monótonas, fatigantes pela sensação de angústia suspensa, permanente e sem resolução.


Gostaria de refrir a obra da Isabel Soveral, Mémoires d'Automne/quadro III, como uma obra escrita dentro de um espirito serializador que com a conjunção da electrónica permite o fluir do talento e da musicalidade desta compositora portuguesa. Não lhe farei a mesma recomendação que a António Chagas Rosa pois a compositora parece saber percorrer um caminho pouco vinculado a uma estética serializadora da qual se serve como mera forma de estruturar as obras que produz.




Do último concerto, pelo Smith Quartet, tenho de começar por referir que não gosto da generalidade da música contemporânea norte-americana. Black Angels de George Crumb e Different Trains de Steve Reich só vieram confirmar o que acima escrevi. Parece-me uma música de efeitos carente de uma reflexão estético-musical.
No entanto a peça de Simon Emmerson, Fields of Attraction, revelou-se um bom trabalho para quarteto de cordas com electrónica.

Quanto à peça de António Pinho Vargas, Monodia-quasi un Requiem é uma peça que transpira musicalidade e que me fez recordar as últimas obras do grande Luigi Nono, ainda que Pinho Vargas consiga uma singularidade que o personaliza.


Quanto ás obras de "Vídeo-Música" e dado que são isso mesmo, gostei da Viagem ao Interior da 5ª Essência de Isabel Pires e Pedro Oliveira, de Lautomata de Pedro Rebelo e da Matrrrrr de Miguel Azeguime e Perseu Mandillo. Sobre To a Wordl Free from religions quero dizer que esperava outro trabalho do Pedro Rocha. Conheço o compositor e sei que adquiriu uma sólida formação. Não consigo entender como pôde apresentar uma "banda sonora" tão pobre. Tem de re-pensar os trabalhos que faz ao nível electrónico ou então dedicar-se à composição "a sério" para a qual adquiriu formação: acústica e electroacústica.


Sobre as peças electroacústicas que pretendem ser obras de música, tirando uma ou outra excepção não lhes darei esse estatuto. Algumas podem ser interessantes dada a inteligência com que são construídas. Outras não merecem sequer ser integradas num concerto público, sobretudo se é um concerto pago.




Qual o futuro da Música Viva?
Espero que seja brilhante.
Mas espero também que nos traga mais música acústica, mais obras mistas (acústica e electrónica) e que dê menos lugar a obras-lixo que qualquer um pode fabricar servindo-se das possibilidades actuais dos computadores e programas de produção sonora.
Ou que lhes seja dada essa possibilidade... em concertos não pagos. O público não deve ser induzido a pagar gato por lebre.













* Nos arquivos encontram-se entrevistas a grandes intérpretes, para além de outros textos.