2005/03/11

A ESTUPIDIFICAÇÃO INSTITUCIONALIZADA

Logo no final da primeira obra no recital de comemoração dos seus 25 anos de carreira tocou um telemóvel. Artur Pizarro parou e passados segundos recomeçou. Suponho que foi em La vallée des cloches de Miroirs de Ravel. Uma leitura miraculosa onde o pianista fazia "legattos" próprios de um artista inspirado e de grande técnica. O piano revelava problemas na parte sobre-aguda...

Mais tarde tocou outro (telemóvel) que ele ignorou talvez para evitar repetir a "cena". Ouviam-se barulhos e conversas vindas dos corredores: era o sujeito do telemóvel a atender a chamada e posteriormente a discutir com os funcionários do teatro. Porque é que não foi chamada a polícia para identificar os individuos dos telemóveis para o caso do teatro decidir avançar com um processo cível para ser indeminizado da péssima imagem criada e poder indeminizar quem pagou bilhetes e viu o recital interrompido?
 
Já depois do intervalo, a interromper uma genial e meditativa interpretação de Clair de Lune da Suite Bergamasque de Debussy tocou outro telemóvel. Era demais. Artur Pizarro saiu de palco esperando que a pessoa responsável por tal absurdidade se retirasse. Mas alguns tugueses têm uma lata infinita! Não só a pessoa não se retirou como foi reivindicar o dinheiro que pagou pelo bilhete devido ao facto do recital não se ter concretizado até ao final!!! É de facto impressionante! O portugalito dos galitos de barcelos na sua melhor erudição pois isto é gente supostamente culta que vai a recitais "eruditos"... 

Após o recital inacabado que decorreu no Teatro São Luiz em Lisboa, o pianista conversou connosco na presença de várias amigas e amigos à mesa de um restaurante onde tentamos esquecer a suite de Debussy que ficou incompleta e a sonata de Rachmaninov que não chegámos a escutar.


Artur Pizarro: Posso falar com a boca cheia?

Álvaro Teixeira: Podes. Depois das premiadas mazurkas do Scriabin

AP: Premiadas onde?

AT: Bom... Receberam três estrelas na Pinguin...

AP: Ha!

AT: Que outros registos tiveste em destaque?

AP: Não tens cassete suficiente para que eu as diga todas.

AT: Não te preocupes. Isto é uma memória digital...

AP: Olha... O penúltimo que foi um dos discos para a Naxos com a integral para piano do Joaquin Rodrigo foi Gramophone Editors Choice de Abril deste ano (ne: também recebeu o Classic FM Best Buy de Março). Um dos meus discos de Vorsichék recebeu o Diapason d'or... Tive vários Choc de la Musique quando gravava para a Collins, quando ainda existia...

AT: Quais?

AP: Já nem me lembro... Mas foram para aí uns três. Também tive três Gramophone Editors Choice para além daquele que já te disse. Pá, tenho uma carreira já longa! Normalmente não ando é com uma lista dos cd's que tive em destaque...

AT: Eu ouvi partes da tua interpretação das últimas sonatas de Beethoven... Pá, tenho dezenas de interpretações dessas sonatas... e devo dizer-te que achei a tua leitura com um nível interpretativo muito, mesmo muito elevado.

AP: Estás a referir-te a que sonatas?

AT: Ás últimas. Achei-as de facto com um nível impressionante. Como as gravaste? Por takes? Por andamentos completos?

AP: Não, não. Gravei três ou quatro completas, depois ouvi-as e fiz retoques. Por vezes o piano desafinava... Depois cose-se para tapar esse género de imperfeições. Ao nível dos takes fi-los o mais longos possivel. Se não fica tudo retalhado e os andamentos não batem certo, o timbre do piano não bate certo, as melodias não batem certo... Portanto tem de se fazer takes o mais longos possivel.

AT: Entretanto tu tens tocado muita música do século vinte. Neo-clássica. Isto é: nós conhecemo-nos para aí há vinte anos mas há quinze anos, para não falar em vinte, tu não tocavas nem pensavas em tocar este género de repertório.

AP: Não tinha tido tempo para a aprender. É óbvio! Aliás a construção do meu repertório foi feita cronológicamente.

AT: Neste momento és dos pianistas que toca mais obras do século vinte.

AP: Olha que não. Ainda ontem toquei Palestrina.

(risos)

AT: Ele disse que ontem tocou Palestrina...

AP: Olha que o repertório do século vinte vai de Rachmaninov, Glazunov e Rimsky-Korsakov até ao... áquele nosso conhecido...

(risos)

AT: E porque falaste nesse?

AP: Como a noite começou mal é para acabar pior...

(risos)

AT: Diz-me uma coisa: quando é que vais tocar os estudos do Ligeti?

AP: Quando o panorama musical português evoluir ou seja

AT: Desculpa! Tu que és um pianista de carreira mundial não podes escudar-te no panorama português.

AP: Não me deixaste acabar. Eu tocarei Ligeti quando o panorama cultural português evoluir ou seja quando as labaredas do inferno congelarem.

AT: A metáfora teve piada mas que eu saiba não fazes Ligeti na Inglaterra onde vives. Porquê?

AP: Porque não é para lá chamado.(risos) Para te dizer em bom português eu gosto mais de stacatto que de legattos.

AT: Ok. Ok. De qualquer das formas...

AP: Como diziam as meninas de Odivelas que não podiam dizer que não gostavam da comida que estava a ser servida, tinham que dizer "eu não aprecio este género de alimento". Será essa a frase que eu posso utilizar. É um género de alimento não necessáriamente apreciado à minha mesa.

AT: Sabes que eu já escutei algo parecido da boca de um pianista que eu sei que não aprecias particularmente? O El-Bacha.

AP: Então... Já marcou pontos no meu livro.

AT: Já ficaste a gostar um bocadinho mais dele...

AP: Do Abdel...

AT: Em relação a Portugal tu que práticamente nunca viveste cá...

AP: Desculpa! Eu só saí de Portugal em 1977 e vivo desde 1968. Mas também é verdade que o Portugal que conheci já não existe.

AT: Desculpa mas tu estudaste nos Eua com o Sequeira Costa e depois de uma curta passagem por lisboa foste para Paris de onde me escreveste a dizer que tudo era trivial naquele país... A começar pelo Cicolini com quem foste estudar... É uma carta histórica. É pena tê-la perdido. Dizias que até a Torre Eifel era trivial... E do Cicolini dizias... Hum... Não me apetece dizer.

AP: Isso mostra que não digo só mal de Portugal.

AT: Demonstra é que quase não viveste em Portugal. Consegues fazer uma análise distânciada deste país?

AP: Consigo. Quanto mais distânciada melhor.

(risos)

AT: Está tudo dito... Ia-te perguntar mais coisas em relação a Portugal mas parece que ficou tudo dito... Diz-me uma coisa: porque é que deixaste de tocar na Gulbenkian?

AP: Mas eu não deixei de tocar na Gulbenkian!

AT: Há anos que não tocas lá...

AP: Dois anos e meio.

AT: Porquê?

AP: Hum... Porque ainda não me convidaram para voltar. Não é a primeira vez...

AT: São eles que não te convidam?

AP: Não sou eu que vou lá pedir para tocar!!!

AT: Evidentemente, mas não te convidam?

AP: Quer dizer... Há muitos pianistas no mundo... terá de haver uma certa escoagem... uns certos intervalos... senão estou lá eu a tocar todos os anos o que também é uma chatice.

AT: Pois. Na Gulbenkian por vezes tenho ouvido péssimos solistas...

AP: (sussurrando) Não fales mal da minha amiga... ela é uma excelente violoncelista e só desafinou cá. Para a semana vou fazer um recital com ela...

AT: Sendo tu um pianista de grande nível com reconhecimento mundial porque é que não te convidam para ires lá mais regularmente?

AP: Não devem ter dinheiro para pagar o meu cachet... Sou muito caro...

AT: Repetindo... Os Diapason's d'or...

AP: São marketing... como o é qualquer prémio.

AT: E os Editors Choise?

AP: É marketing para vender discos inventados pelas revistas que querem vender discos. Portanto é marketing. Para o público que não sabe diferenciar entre um bom disco e um mau disco pensar "ha aquele disco tem a etiqueta xis portanto é aquele disco que eu vou comprar". Da mesma maneira que um actor tem um óscar ou não tem um óscar mas não é o óscar que faz com que o actor seja bom ou não. Tu não vais dizer por exemplo que todos os filmes que o Clint Eastwood escreveu ou dirigiu foram uma merda até ele ter recebido agora este óscar. Que até toda a gente faz troça do óscar por só lhe ter sido atribuído agora. Portanto: não é ele ter o óscar ou não, eu ter o diapason ou não, não é o outro ganhar o gramophon ou não que faz que ele seja bom ou que ele seja mau, que ele tenha carreira ou não tenha carreira.

AT: Concordo inteiramente. Conheces uma pianista que se chama Eliseo Versiladse?

AP: Eliso Virsaladze, conheço.

AT: Que achas dela?

AP: Uma grande senhora, uma grande pianista, tem óptimas interpretações... tem outras que podes gostar ou podes não gostar mas não deixa de ser uma séria artista e uma séria pianista.

AT: Práticamente desconhecida do mercado francês para não falar do ibérico que não tem relevância...

AP: Completamente em desacordo contigo. Toca imenso em França.

AT: Nunca vi nenhuma gravação dela em França... nenhuma etiqueta...

AP: Channel Classics, gravou para... qual é aquela que tem as gravações todas da Natália Gutmann e do Richter... da Eliso Virsaladze são para aí uns sete ou oito discos e estão todos à venda em França. Possivelmente o distribuidor francês não será grande coisa... Mas ouve lá: desde quando é que França é o centro do universo? Pergunto-te eu!

AT: Desde nunca. Hum... desde nunca...

AP: Também te posso dizer nesse caso que a Eliso Virsaladze nunca tocou com a Orquestra Metropolitana de Lisboa portanto não prestará para nada... nem nunca teve o prazer por exemplo de ir tocar com a Orquestra das Beiras...

AT: Existe?

AP: Acho que deixou de existir...

(comentários diversos)

AP: Quando eu comecei a tocar, a ser alguém e a ter carreira nunca tive o prazer de tocar com o Silva Pereira, portanto também não existo. Tá dito!

AT: O Richter disse que a Eliseo Verdiladze...

AP: Vir-sa-la-dze

AT: é a melhor intérprete viva de Schumann... concordas?

AP: ... na opinião dele seria... mas a opinião dele é a opinião dele! Mas sabes quantos pianistas são necessários para mudar uma lâmpada? Onze: um pá mudar e os outros par estarem à volta a dizerem "eu não teria feito bem assim". Portanto a resposta está dada. Portanto um pianista que dá uma boa opinião de outro pianista trás sempre água no bico.

(risos)

AP: Vamos ser honestos né?

AT: Achas que o Richter era especialmente amigo da Eliseo?

AP: Especialmente amiga em que sentido?

AT: Não sei... Para dizer uma coisa dessas...

AP: Que teriam ido para a cama juntos é?

AT: Não. Acho que não. Eu sei... imagino que isso não aconteceu. Não é essa a questão...

AP: Aliás o Richter gostava muito da sua esposa e que não haja confusões.

AT: Como te sentes depois de teres que interromper um concerto devido a toques de telemóveis?

AP: Francamente aliviado.

AT:...

AP: Pude vir jantar mais cedo!

(risos)

AT: Queres dizer mais alguma coisa?

(risos)

AP: Tão a ver como no meio desta coisa toda com o Álvaro...

(risos)

AT: Queres dizer mais alguma coisa? Que aches importante quer do ponto de vista artístico quer... por exemplo o que é que achas do panorama musical internacional em termos de produção de novas obras? Contemporâneas. Eu sei que não conheces muito mas fala do que conheces.

AP: Acho...

AT: Achas que vivemos um tempo de grande criatividade? Ou não conheces?

AP: Quantitativamente... Acho que vivemos um grande periodo de grande actividade quantitativa. Sim. Acho.

AT: Isso tem a haver com questões políticas não? Há minitérios da cultura e...

AP: Não, não, não, não. Acho que realmente se cria muito e há muita coisa nova a sair. Imensa! Uma quantidade brutal de novas composições... de novos compositores, de estreias de obras novas...

AT: Não vou pedir-te para me citares porque tu não vais citar... não conheces... Ou conheces compositores contemporâneos?

AP: Conheço...

AT: Diz lá então.

AP: Olha. Conheço... queres compositores contemporâneos com quem eu tenha trabalhado?

AT: Tu trabalhaste com compositores contemporâneos?!

AP: Finissy, George Benjamin, Hans Werner-Henze

AT: Trabalhaste com o Henze?

AP: trabalhei... com Takemitsu um pouco antes dele morrer, trabalho com o Ned Rorem

AT: Quem é esse?

AP: Ned Rorem. Compositor americano. Não conheces. Este conheço eu e tu não conheces. No entanto tem nnn discos gravados

AT: Na américa...

AP: E viveu em França!

AT: Ha!

(muitos risos)

AT: Os franceses são muito heterógeneos.

(mais risos)

AP: ... que era uma sua tia... chamada Schubert... que morava por cima de uma Stock-Hausen...

(risos)

AT: Olha... e em termos de pianistas... as novas gerações... o que achas que as novas gerações de pianistas que estão na forja... conheces alunos do conservatório de Moscovo? Ouviste tocar alunos desse conservatótio?

AP: Já...já... Olha: ouvi tocar o Richter, ouvi tocar o Gilels, ouvi tocar o Krainner...

AT: Alunos actuais!

AP: Não , não. Normalmente não vou à Rússia... Aliás não sei qual é o fascínio particular do conservatório de Moscovo. Era como por exemplo falar-te dos alunos da Nadia Boulanger que são pelo menos 300.000! Pronto, o conservatório é um edifício bonito. Por acaso tens umas histórias bonitas... Tem uns daqueles elevadores à antiga com as portas em acordeão, etc mas não sei qual é

AT: Achas que o conservatório de Moscovo perdeu qualidades?

AP: Acho é que estudar com um edifício é um bocadinho ridículo.

AT: O edifício tem professores lá...

AP: Tá bem, então diz-me o nome do professor e eu talvez te diga... porque isto de ir estudar para o conservatório de moscovo é... olha eu quero ir para ali estudar para a 112 e não para o 46. E no terceiro andar! Aliás eu nunca fui estudar para conservatório nenhum. Fui estudar com o professor tal ou o pianista tal. Dizer que estudou no conservatório de Moscovo é como dizer que estudou no liceu Maria Amália. Q

AT: Quais foram os professores com quem estudaste?

AP: ...

AT: Para além do Sequeira Costa.

AP: O Sequeira Costa... trabalhei com o Cicollini quatro um cinco lições... trabalhei com o Bruno Rigutto. Também quatro ou cinco lições...

AT: Quem?

AP: Bruno Rigutto. Mora em França, grava em França, toca em França... E em Itália também de vez em quando.

AT: Ele faz música contemporânea...

AP: Não, não. O Bruno Rigutto não.

AT: Mas já fez música contemporânea.

AP: Esse é o Bruno Canino...

(risos)

AP: Tive algumas lições também com o Jorge Moyano... tive algumas lições com o Claúdio Fink, toquei algumas vezes para o Fleisher... mas professor professor a sério só tive o Sequeira Costa.

AT: Quando é que voltas para fazer um recital... (risos) sentes-te com coragem depois de tantos toques de telemóvel, pá?

AP: Voltar aonde? A dar uma recital cá? Em Lisboa?

AT: Sim.

AP: Quando me convidarem. E se não desligarem os telemóveis é um programa curto... (risos) como foi o de hoje.

AT: Se isto se passasse no Barbican terias feito a mesma coisa?

AP: Se se tivesse passado no Barbican teria feito a mesma coisa mas a grande diferença é essa é que isto não se passa no Barbican. Mais a mais o Barbican tem detectotes de telemóveis para o caso de algum turista português, que por acaso saiba o que é o Barbican, queira ir a um concerto. Portanto estão lá. Tanto que nos detectores de metais estão as bandeiras portuguesas e só funcionam com telemóveis portugueses...

AT: Quando tive lá não havia... isso é verdade?

(risos, gargalhadas...)

AT: Acabou a entrevista!

AP: Aconteceu-me uma vez... e estavam várias pessoas portuguesas na plateia... aconteceu-me uma vez no Royal Albert Hall durante um promenade concert com a orquestra de Liverpool com o maestro Libór Pashék

AT: Já ouvi falar muito bem dele...

AP: Apesar de não gostar de dirigir em França mas tudo bem. Ha... (risos)

AT: Nada disso. França nem sequer tem nenhuma das minhas orquestras preferidas. Calma aí!

AP: Mas então tava eu a dizer... no andamento lento ...

AT: Nem maestros!

AP: Estava eu a dizer! No andamento lento do primeiro concerto de Liszt tocou um telemóvel no Royal Albert Hall que leva mais de 5.000 pessoas. Tocou uma vez. Foi apagado. Mas vieram as duas pessoas que pegam nos teus bilhetes e vão com a lanterna levar-te ao sítio... apareceu um de cada lado, isolaram a pessoa, pediram à pessoa para se levantar e a pessoa foi escoltada até à porta da saída. E pronto! Problema resolvido.

AT: É assim mesmo.

AP: Só em Portugal é que eu tenho de parar e dizer "atenda que eu espero um bocadinho". Mas como em portugal vive-se em democracia e cada um faz o que quer... Aliás: vive-se em anarquia que em portugal é tida como democracia porque em portugal a definição é ligeiramente diferente... é eu faço o que quero e escarro para cima de ti e posso ser nafabeto que nem sabem dizer analfabeto... Ha, o problema é ligeiramente diferente... é a estupidificação institucionalizada!




2005/03/10

DOIS PIANISTAS CONTRA A SOLIDÃO

A Associação Coração Amarelo que diz lutar contra a solidão dos idosos, promoveu um recital de dois pianistas para arrecadar fundos. Foi no Teatro São Luiz, dia 9 de Março. Fomos ao engano. Na realidade pensávamos que iamos a outro concerto. Depois de constatarmos o engano, fomos convidados a ficar.

Os intérpretes foram Domingos António e António Maria Cartaxo. Domingos António iniciou os estudos nos Eua onde nasceu há 29 anos e posteriormente fez o curso de piano no conservatório Tchaikovsky com o professor Dmitri Saharov, tendo-o concluído com a classificação de "excellent".
António Maria Cartaxo tem 17 anos e estuda em Bruxelas com Sergei Leschenko. Recentemente fez uma "master class" com Abdel Rahman El-Bacha (existe uma longa e interessante conversa nos nossos arquivos com este fabuloso pianista que no último festival de Sintra nos apresentou a integral das obras de Chopin).


Domingos António apresentou-nos um programa ambicioso: dele constavam a sonata número 28 de Beethoven e a "Sonata após uma leitura de Dante" de Liszt.
Começou com o momento musicalnúmero seis de Schubert onde revelou uma impressionante falta de compreensão dos fraseados e da melodia condutora da obra que por vezes se deixava de ouvir. Seguiu-se uma popular e banal "Avé-Maria" Schubert-Liszt da qual nada temos a dizer para além de que a banalidade da interpretação esteve a par da banalidade da peça.
Quanto à sonata de Beethoven temos de dizer uma coisa: não compreendemos como é possivel alguém que não controla o pedal misturando harmonias de forma grosseira e que é absolutamente incapaz de uma leitura musical e inteligente do grande compositor, acabe com "excellent" a graduação num conservatório que tem alguns alunos (e nós conhemos) que vão estar entre os grandes pianistas das próximas gerações.
Quanto á "Dante Sonata" obra de muitos artifícios mas pouca música, Domingos António conseguiu de alguma maneira recuperar do desastre que foi a primaira parte do seu recital. Este pianista defende-se bem nas oitavas e nas oitavas quebradas assim como nos trémulos de grande efeito sonoro que Liszt usa e abusa. Portanto o pianista conseguiu dar uma imagem de virtuoso que não é pois em muitos momentos ficaram bem patentes as suas debilidades técnicas. O público delirou com a "festa sonora" lisztiana e Domingos ofereceu-nos como bis um "romance" de Brahms cuja interpretação foi estranhamente má. Para acabar foi de novo Liszt, com uma rapsódia húngara onde ficaram patentes tanto as debilidades técnicas do pianista que tocou partes desta rapsódia a menos de metade do andamento perdendo-se o "fio melódico" mas que acabou em "pompa e circuntância", habilidade na qual mostrou ser mestre. E de novo o público se levantou aos bravos...

Vamos agora falar do jovem António Maria Cartaxo. Com os estudos opus 25 nº1 e opus 10 nº3 de Chopin o pianista revelou uma sensibilidade e uma musicalidade que nos fazem prever o advento de um grande pianista se continuar a ser bem orientado. El-Bacha é alguém que, nomeadamente em Chopin, o poderá aconselhar e dar orientações preciosas.
A técnica revelada nestes estudos é uma boa técnica que revela já consistência. No entanto o pianista necessita, em meu entender, de criar um som "maior" e abrir a "paleta dinâmica". Também me pareceu que a mão direita tem pouco "poder" o que levou ao esbatimento do argumento apresentado por esta mão na sessão B da Balada nº2. Os bons professores russos são mestres nisto mas necessitam do "tempero" de alguém como El-Bacha. Básicamente parece-me que ao nível de orientação António Maria está em boas mãos.
No início da já referida secção B da balada o argumento da mão direita foi "esborrachado" o que causou instabilidade na interpretação que o pianista conseguiu superar. Ouve outras "gaffes" mas ele conseguiu agarrar a sequência discursiva e manter o nível da interpretação o que é muito bom porque falhas acontecem sempre e há desde logo que saber superá-las.
Das Mazurkas opus 63, a nº 2 foi especialmente monótona mas a nº 3, que é bem mais "interessante"(neste caso bela), foi tocada com muita convicção e expressividade o que manteve o pianista dentro do elán expressivo que caracterizou toda a sua apresentação.
Com um professor russo não podia faltar o Scriabin grande e fabuloso compositor-pianista.
Os dois poemas opus 32 foram muito bem conseguidos por António Maria que no entanto no segundo poema não conseguiu ser absolutamente transparente. Há que ter cuidado pois a "transparência", a clareza dos fraseados mesmo nas partes de "muito som" é por vezes a ténue linha de demarcação entre o "bom mediano" que não deixará marcas e o excepcional. Agora que está prestes a acabar a formação secundária geral vai poder dedicar-se em tempo total ao piano. Por isso não esperamos dele menos que a excepcionalidade. Ast

2005/03/05

CAMERATA DA METROPOLITANA INTERPRETA DAS LIED VON DER ERDE


A redução para orquestra de câmara de Das Lied von der Erde é talvez a mais bem conseguida adaptação feita de uma obra escrita para grande orquestra. Schoenberg, grande admirador de Mahler, foi o autor desta adaptação que foi concluída por Rainer Riehn em 1983.

Tratando-se de um reduzido aparato instrumental que vai interpretar uma obra originalmente escrita para grande orquestra temos novamente a situação de que todos os instrumentistas são solistas o que coloca exigências de grande calibre.

Infelizmente só pude escutar a última parte desta impressionante e comovente obra, Von der Schönheit, que é na verdade o culminar não só desta sinfonia com "mezzo" e tenor mas de todo o ciclo sinfónico do mais genial e fantástico sinfonista de todos os tempos.

Qualquer interpretação de Mahler é sempre um momento de particular suspensão e inquietude pois a sua música fala-nos da nossa condição de seres existenciais que vivem em situação limite sempre determinada pelo advento da sua finitude. A interpretação deste compositor exige mais do que grande técnica: exige um "grande espírito" e uma "alma grande".

Confesso que foi com alguma apreensão que me dirigi já com muito atraso ao São Luiz, onde decorreu esta interpretação pela já referida Camerata da Metropolitana que é constituída pelos primeiros instrumentistas dos naipes da Orquestra Metropolitana.

As vozes eram a da "mezzo" Andrea Bönig e a do tenor Manfred Equiluz que infelizmente perdi todas as partes em que interviu. Na direcção estava Scott Sandmeir.

Bönig compreendeu o espírito da obra e ainda que a sua voz não possua o dramatismo aveludado e sombrio que este final exige, conseguiu uma interpretação com profundidade. Devo dizer que é dificil para qualquer intérprete na actualidade fazer "sombra" ás já muitas e fabulosas interpretações desta obra. E não estou a falar únicamente das "históricas". Por isso no ouvinte habituado a interpretações "paradigmáticas" (ouvi esta obra dirigida por Rattle com Thomas Hampson. Foi a única audição ao vivo desta criação e foi sublime) fica por vezes uma sensação de imperfeição. Bönig não podia ter feito de outra maneira nem podia ter feito melhor. Fez o que fez que foi algo com "peso" e com "música".

Os instrumentistas/solistas surpreenderam-me. A perfeição meditativa das cordas, as expressivas intervenções do primeiro violino, a comovente sonoridade da oboísta, as sonoridades aveludadas e "profundas" do clarinete baixo (que esteve sempre a trocar de instrumento), o fraseado da flauta, foram marcantes e conquistaram-me para os próximos concertos desta Camerata.

De Manfred Equiluz disseram-me ter perdido grandes momentos.

A direcção de Sandmeir foi clara e determinante para esta homenagem (a interpretação do "Canto da Terra" é sempre uma homenagem, diria mesmo o "tempo de religiosidade" que Wagner pretendia alcançar... Foi Mahler quem o atingiu nesta obra e anteriormente na 9ª Sinfonia) a um dos maiores génios de todos os tempos. Ast









2005/03/04

CONCERTO PARA ORQUESTRA DE BARTÓK

O Concerto para Orquestra de Bartók teve uma boa interpretação pelo agrupamento da Gulbenkian dirigido por Lawrence Foster. Os metais estiveram particularmente espectaculares, espectacularidade reconhecida com algum estrondo pelo público no final (concerto de quinta-feira).
Foi uma interpretação que poderiamos qualificar de muito boa, precedida por Três Esboços Sinfónicos de Joly Braga Santos interpretados com convicção. Trata-se (as peças de Joly) de música com pouca estrutura mas orquestração efusiante...

A seguir tivemos um triplo concerto de Beethoven de antologia. A orquestra enquanto todo não esteve totalmente mal... As madeiras têm uma sonoridade extremamente pobre (execeptue-se talvez as flautas) e cada vez que intervinham ouvia-se uma espécie de "canas rachadas" que pontuavam (pontuavam...) o discurso. A violoncelista-solista (Sonia Wieder-Atherton) raramente afinava o que se tornou um (longo)suplício para ouvidos com sensibilidade "normal". A pianista Imogen Cooper, que não ultrapassou a mediania na quinta-feira, na sexta-feira esteve particularmente mediocre. Só o violinista Raphaël Oleg com uma afinação impecável e uma bonita sonoridade teve um desempenho muito bom na quinta-feira. Na sexta, talvez devido à mediocridade generalizada, baixou o nível. É que é difícil aguentar as más companhias...

Um concerto que valeu pelas curiosas peças do Joly, mas sobretudo pela interpretação de Concerto de Bartók que (enfim...), apesar de toda a atrocidade no Beethoven, lá justificou a nossa ida à Gulbenkian... AST














2005/03/03

TERCEIRA SINFONIA DE BRAHMS PELA ORQUESTRA NACIONAL DO PORTO


No teatro de São Luiz em Lisboa e sob direcção do maestro titular Marc Tardue (existe uma entrevista com ele algures nos nossos arquivos) esta formação uma vez mais demonstrou que é indubitávelmente o melhor agrupamento sinfónico de Portugal. A sonoridade das cordas foi uma vez mais fabulosa, os metais potentes e afinados (algumas falhas pontuais são muito pouco significativas num caso de excelência global como é esta orquestra), as madeiras "redondas" e "cheias" e as percussões precisas e eficazes.
Se no Don Juan de Richard Strauss que abriu o concerto o conceito de Tardue não nos convenceu (a sua leitura foi pouco coesa não criando uma sensação de continuidade em nosso entender indispensável a uma obra "programática"), já na terceira sinfonia de Brahms a sua leitura foi bem mais convincente e a orquestra fez uma interpretação belíssima da obra do romântico germânico. Os terceiro e quartos andamentos foram os mais conseguidos, onde as cordas demonstraram a sua sonoridade de excepção nomeadamente no tema dos violoncelos do terceiro andamento. Mas toda a sinfonia foi uma grande realização desta fantástica orquestra portuguesa que tocou bem fundo no público presente. Pena é que a casa não estivesse completa pois trata-se de uma orquestra de primeiro plano e o coliseu enche-se frequentemente para ouvir orquestras que por vezes ficam muito aquém do esperado...

Já no concerto para piano nº 20 de Mozart também apresentado na primeira parte, ainda que a orquestra tenha feito uma interpretação honesta não gostei da concepção fraca de Jorge Moyano, da sua falta de arrebatamento e do seu som débil sobretudo num concerto que é dos mais geniais e belos produzidos por Mozart.

Esperamos que voltem em breve pois as interpretações da ONP são sempre um (bom) acontecimento. Ast









2005/03/02

BIRMINGHAM CONTEMPORARY MUSIC GROUP EM LISBOA


Foi no dia 28 de Fevereiro no Auditório Gulbenkian que este "ensemble" constituído por músicos de excepção interpretou, sob a direcção precisa e talentosa de Susanna Mälkki, obras de David Sawer, Stuart MacRae, Harrison Birtwistle, Luis Tinoco e Thomas Adès.

Infelizmente não ouvimos a obra de Sawer mas a de MacRae, Two Scenes from the Death of Count Ugolino (para ensemble e meio soprano) é uma obra não só interessante como de uma inteligência construtiva e de uma musicalidade fabulosas a que a "mezzo" Loré Lixenberg fez plena justiça.

Ritual Fragmente de Harrison Birtwistle é uma obra dentro da estética teatralizante do compositor que não deixa por isso de ser musicalmente interessante.

Hovering Over de Luis Tinoco é um exercício com base em sucessões de acordes arpejados. Estruturalmente muito simples produz um efeito sonoro com alguma espectacularidade. Algo dentro do mesmo registo do que escutamos anteriormente do mesmo autor.

Living Toys de Adès continua na senda simplista deste autor que já é um clássico da música inglesa. E é-o exatamente porque nasceu em Inglaterra (nos Eua só teria de escrever algo ainda mais simples e seria igualmente consagrado). Em França provavelmente não comporia assim pois arriscava-se a nem sequer ser tocado e se fosse em Portugal talvez nunca tivesse passado dos concertos de escola. Vantagens de nascer num país com influência mundial, dotado de políticas para a cultura e que (não por acaso) sempre rejeitou o legado serial e post-serial: cada dia são interpretadas obras de Adès em algum lugar do mundo. Ast










2005/03/01

THE BEGGAR'S OPERA DE BRITTEN NO TEATRO ABERTO


Com direcção musical de João Paulo Santos, encenação de João Lourenço e cenografia de João Mendes Ribeiro, esta interessante ópera de câmara de Benjamin Britten esteve em cena no Teatro Aberto em Lisboa até 6 de Março.

Trata-se de uma muito bem conseguida produção, totalmente portuguesa (exceptuando alguns instrumentistas e o narrador), que dá possibilidade ao público lisboeta de conhecer mais uma das óperas do compositor inglês.

O leque dos doze instrumentistas revelou-se à altura do empreendimento: numa formação reduzida os músicos funcionam práticamente como solistas. Não vou nomeá-los mas aqui fica o reconhecimento pelo excelente trabalho que desenvolveram e irão continuar a desenvolver pois a ópera no Teatro Aberto é para continuar.

Os cantores estiveram muito bem sendo eles Wagner Dinis, Susana Teixeira, Mário Redondo e Sílvia Filipe. Especial referência para Sónia Alcobaça, Dora Rodrigues e Mário João Alves nos principais papéis solistas. O côro cumpriu a sua função...

A direcção de João Paulo Santos foi eficaz e revelou um conhecimento profundo da partitura.


Também a encenação e a cenografia são interessantes e funcionaram bem no conjunto. Já os figurinos, aparentemente "à moda da época", pareceram-me muito pouco criativos e previsíveis.

No global uma produção de bom nível e elevado interesse. Ast