2006/02/20

NUNES E BERIO NA CASA DA MÚSICA

Hoje, 19 de Fevereiro, sob a direcção eficaz de Peter Rundel, o Remix Ensemble, um dos agrupamentos residentes na Casa da Música do Porto, apresentou uma longa obra do português Emmanuel Nunes e duas do histórico Luciano Berio.

O interessante é que à volta de obras com um intervalo de 45 anos, podemos comparar os resultados musicais de dois compositores dotados, grosso modo, das mesmas preocupações conceptuais.

Tempi Concertanti, de Luciano Berio, é uma obra de 1958-59, época do alargamento do serialismo integral, sendo esta obra um trabalho que podemos chamar de post-serialista, tal como Épures du Serpent Vert II, de Emmanuel Nunes, criada em 2005. Post-serialismo porquê? Porque basicamente as preocupações micro e macro estruturais são as mesmas que as das obras "serialistas integrais" que se revelaram uma impossibilidade musical, melhor dito uma fraude musical, pois obedeciam únicamente a padronizações lógico-formais, não resultando auditivamente. Os compositores, dentro desta "linhagem", tiveram então de encontrar maneiras de ultrapassar o carácter fortemente anti-musical das obras serializadas integralmente, ainda que mantendo o fundamento conceptual praticamente idêntico. Neste periodo Berio ainda alinhava "nestas coisas". Era a "moda" no ocidente musical erudito. Posteriormente Luciano Berio afastou-se radicalmente das correntes post-serialistas.

Emmanuel Nunes é um dos principais representantes daquilo que ainda existe do chamado post-serialismo. Boulez já não compõe. Stockausen compõe para "animar a malta" com as suas esquizofrenias e para ganhar "umas massas". Nunes compõe a sério, levando ás últimas consequências o seu pensamento que é basicamente de uma integralidade serialista, que ele modula com sistemas de proliferação sonora que obedecem a uma lógica serializante. De obra para obra cria diferentes sistemas que procuram fazer consistir integralmente a obra a partir de ideias elementares, que são várias espécies de séries, criadas com relações específicas que ele condiciona, que por sua vez vão determinar a semiótica e a estrutura da obra. Stockausen não se dá a este trabalho. Já não consegue pensar bem. Está senil. Inventa uns pseudo-mitos, diz que é deus, tem uma côrte de seguidores que o levam a sério, enquanto os músicos se sorriem das banalidades que o pseudo-génio vai mandando cá para fora numa idade em que deveria revelar um pouco mais de comedimento, mais que não fosse por respeito das coisas com algum interesse que conseguiu produzir no passado.
Portanto não podemos comparar Nunes e o seu esforço genuíno com Stockausen e os seus rasgos esquizóides.
Por isso foi muito interessante um concerto onde se escutou um Berio de há 45 anos e um Nunes do ano passado.
Qual é a diferença essencial?
Berio, mesmo com o corpete serial, consegue fazer música para além da formalização lógica. Nunes soçobra a essa formalização.
Ouve-se Berio e sente-se que por detrás do esforço conceptual conseguiu produzir música. Escuta-se Nunes, admira-se o homem que é coerente com ele mesmo, com a sua estética, com a sua "filosofia musical", mas não se ouve música. Escutam-se sucesssões de sons que sabemos terem lógica formal, mas não sentimos que essas sucessões tenham qualquer espécie de necessidade interior inerente ao próprio fluir sonoro. Por isso, apesar das secções fortemente contrastantes, tem-se a sensação de estar parado. Porque de facto não acontece nada musicalmente. Os sons desvelam-nos uma conceptualidade interessante, mas não se desvelam como música. Desvelam-se como a materialização de um aparato conceptual, "novo" porque inventado para aquela obra, mas exterior à música enquanto "ente" autónomo. Isso poder-se-ia passar com qualquer outro compositor. Aliás passou-se com muitos, demasiados, porque foram poucos, sobretudo na chamada música contemporânea, aqueles que conseguiram dominar o espartilho conceptual submetendo-o à vontade e à necessidade primordial de criar música, por um lado, não "embarcando" em formas "fáceis", ás quais se aplica um veriz erudito, como manda o "culturalmente correcto", e que agradam "naturalmente" ao público, por outro.

Il ritorno degli snovidenia, um Berio de 1976, é uma fantástica colagem de temas sicilianos e cantos revolucionários russos. Dizer isto remete-nos para a ideia de kitsch? Talvez nas mãos de qualquer outro. Berio consegue um trabalho de metamorfose dos temas, das súbteis texturas, dos timbres, das densidades, que transformam um trabalho "leve" numa obra dotada de uma "poesis" extraordinária. Esta obra para violoncelo e pequena orquestra, teve uma interpretação belíssima com Pierre Strauch no violoncelo. Falamos dela na conversa que tivemos com Strauch e que ficará online brevemente. AST