2006/02/22

O IRCAM ESTÁ MAIS ABERTO E INTEGRADO

No bar dos artistas um dos meus amigos violoncelistas começa a conversar, em português, com Pierre Strauch, que para além de ser um violoncelista excepcional também é compositor. Pierre tinha acabado de nos oferecer uma genial interpretação de Il ritorno degli snovidenia de Luciano Berio. Olha, disse-lhe eu, queres fazer uma entrevista para o meu blog? Sim, claro. Em português, respondeu Strauch.

Álvaro Teixeira: Isto é uma entrevista que não estava prevista (até rima...), uma entrevista improvisada... mas como todas as outras também o foram...

(risos)

AST: Não há portanto problema algum. Temos aqui ao nosso lado o violoncelista...

Pierre Strauch: Pierre Strauch

AST: Obrigado. Se não estou em erro és o primeiro violoncelista do Ensemble Inter-Contemporain...

Pierre Strauch: Um dos violoncelistas. Lá somos todos primeiros violoncelistas. Não há hierarquia. Não há primeiros e segundos. Somos todos solistas, digamos.

AST: Bom... O Pierre Strauch esteve aqui no Porto, na Casa da Música, num concerto que acabou há exatamente... dez minutos... onde veio executar Il ritorno degli snovidenia , uma obra de Luciano Berio.

Pierre Strauch: Snovidenia. É uma mistura de italiano e russo. Ritorno significa a volta e snovidenia são sonhos. Foi uma obra escrita para o Rostropovich por ser russo e por serem tratadas melodias russas, cantos russos, numa espécie de montagem, genial, com pequenos excertos de cantos revolucionários e históricos russos. Foi uma brincadeira com o Rostropovich porque o Rostropovich fugiu da União Soviética... o Bério tinha muito humor e então fez uma montagem com cantos comunistas e revolucionários para o Rostropovich tocar. Tem uma certa piada... A obra é muito lírica, muito bela.

AST: Estava a pensar nisso mesmo: é uma obra extremamente lírica. Usam-se muito as surdinas, mantendo-se uma certa uniformização tímbrica que é tratada de maneira genial.

Pierre Strauch: Sim. O clima é muito especial. Não há o confronto tradicional entre o solista e a orquestra. É exatamente isso, um clima de sonho... de sonho desperto ou não, não se sabe muito bem. O solista aparece e desaparece, ás vezes a orquestra "come" o solista mas o solista re-aparece, é uma espécie de divagação nocturna, uma coisa do inconsciente. Está feito de uma maneira incrível. É uma obra excepcional.

AST: Gostas especialmente desta obra ?

Pierre Strauch: Eu tive a sorte de tocar esta obra com o Berio... com ele a dirigir a obra. Fizémos uma apresentação em Itália no ano 78, já são muitos anos...

(risos)

Pierre Strauch: Então descobri a obra com ele dirigindo-a. Obviamente é uma experiência forte e interessantíssima. Entretanto toquei esta obra várias vezes e gosto muito desta obra.

AST: É uma pergunta meia chata mas não sem sentido: quais são os teus compositores preferidos na actualidade? Tu que tocas música contemporânea todos os dias?

Pierre Strauch: Há nomes muito importantes como o Lachemann, na Alemanha, o Emmanuel Nunes em Portugal e em França, porque ele vive em França, não é por ele estar aqui hoje mas é um compositor importante, e o Jonathan Harvey, inglês. Há gente mais jovem mas dos pesos-pesados estes são nomes que vêm logo à memória.

AST: Mas na criação musical contemporânea há um fosso grande entre estes que referiste que são todos de uma determinada escola, usando um termo genérico, e os outros todos que são também importantes e históricos. Estou a pensar nos compositores ingleses, outros que não o Harvey, nos polacos, nos da Lituânia... O Ensemble Contemporain é parcial nas escolhas que faz. Dá preferência aos compositores de determinada escola. Priveligia só uma das muitas escolas e estéticas musicais contemporâneas.

Pierre Strauch: Não é bem assim. Agora estão muito mais abertos que antes e tocamos coisas muito variadas. Até minimalistas americanos ou do norte da Europa...

AST: Mas que bem...

Pierre Strauch: Não, realmente o repertório abriu-se muitíssimo nos últimos anos, nos dez últimos anos. Mudou realmente a programação e agora tocamos ... quase tudo, todo o tipo de estilos da música de hoje. Não se pode tocar tudo mas a programação mudou muito e no sentido da abertura.

AST: Eu percebi que em França o Ircam é mal amado e mal visto pelo cidadão comum. Pelo menos por aqueles que sabem que existe e para que serve...

Pierre Strauch: O Ircam também mudou. No princípio confundia-se muito as instituições criadas pelo Pierre Boulez com o próprio Boulez. Agora o Ircam tem uma vida própria e faz projectos no mundo inteiro. Mas agora tem a sua vida própria e tem muita força. Tem um festival importantíssimo onde vão milhares de pessoas todos os anos em Julho. O Ircam integrou-se muito mais na vida de Paris e de França. Essa situação, que talvez existiu, é passada. Agora já não é o mesmo.

AST: Foi um prazer. Gostei muito desta conversa contigo e gostei muito de te escutar a interpretar aquela belíssima obra de Luciano Berio. E também foi muito interessante poder fazer uma entrevista em português.

Pierre Strauch: Também foi um prazer.