POWDER HER FACE
Trata-se de uma opera composta por um Thomas Ades com 24 anos (o compositor nasceu em 1971 em London). Mas trata-se de uma opera que vai ser uma obra importante entre os trabalhos de uma modernidade que se atravessou do seculo XX para o XXI.
O drama ronda o moderno realismo, com um libreto de Philip Hensher, nascido em 1965, tendo como ocaso a obra de Buchner, Woyzeck, que inspirou o libretto de uma das maiores obras musicais de sempre (a genial opera de Alban Berg com o mesmo nome), Woyzeck este que, talvez por acaso, se apresenta, na forma teatral original, no mesmo local (numa outra sala) onde foi apresentada, na forma de concerto, a opera de Ades.
Trata-se igualmente de uma mulher que uma sociedade machista trucidou. Ali a mulher, uma pobre mulher, foi engolida usada e assimilada pela lei da brutalidade. Da brutalidade que, praticada pelos homens, pode ser horrenda. Woyzec foi o pobre a quem os mais ricos disfrutaram da esposa. Woyzeck vingou-se no lado mais fraco: a mulher que considerava sua. Um triste e estafado conto... Aqui, no libretto de Hensher, tudo gira sobre e com uma mulher que se conduz e conduz os homens. Porque tem dinheiro e nome. Um antagonismo de protagonismos que distingue radicalmente o libreto de Hensher do de Buchner.
Ali, Woyzeck era o quase desamparado, que ficou totalmente desamparado depois de assassinar a sua esposa, membro de uma sociedade de castas onde ele ocupava um lugar na base social e militar. Aqui, a duquesa caiu, estampada, totalmente desamparada, quando lhe faltou o dinheiro. Originalmente ocupava um lugar na sociedade de castas inglesa. Um lugar de topo. Aconteceu com Margaret Williams, Duchess of Argyll, que foi expulsa da suite que ocupava num hotel no ano de 1991. Muito actual...
Os que para mim eram bons eram por mim pagos, constatou a duquesa no final. Seria com ela unicamente a acontecer algo assim? Sabemos que a resposta seria, em todos os casos, na generalidade de todos os casos, negativa. Mas a vertente de sadismo machista, de tremendo e insane sadismo masculino, evidencia-se aqui, muito particularmente e com especial talento, contra uma ex-Don Juan feminina. Talvez porque uma sociedade dirigida e manipulada por homens nunca lhe haveria de perdoar a maneira como usou e usufruiu dos homens. Por vezes pagando-lhes. O julgamento a que a duquesa foi submetida, acusada, entre outras, de condutas sexuais aberrantes ( "fellatio", imagine-se...), foi exemplar deste patetismo morbido a que a agressividade masculina pode conduzir, neste caso, como em muitos outros, sob forma de pretensa defesa da moral e dos bons costumes. Foi no sec XX... Foi igualmente em tonalidade de grande mas contido gozo que o manager do hotel, no final, lhe foi explicando, parco em palavras mas rico em maneirismos vocais, que teria de abandonar o hotel onde residia. Acabou o dinheiro, acabou a estadia. Fatal!
Mas vamos ao trabalho de Ades, criador da obra, que dirigiu o grupo reduzido da London Symphonic Orchestra, ao qual acrescentou um acordeonista que teve um desempenho fabuloso, o mesmo acontecendo com todos os outros instrumentistas. Servindo-se de reminiscencias de estilos musicais bem determinados e genialmente metamorfoseados, Ades conseguiu uma equilibrio dramatico impressionante, tendo produzido uma escrita orquestral de grande mestre. A dualidade solistas/grupo orquestral foi trabalhada de maneira assombrosa, sendo um dos aspectos mais fundamentais desta opera.
Sob batuta do compositor todos os solistas foram extremamente expressivos, muito especialmente Mary Plazas no papel de duquesa. Igualmente Daniel Norman como electricista e mordomo esteve excelente, assim como Valdine Anderson no papel de empregada e Stephen Richardson no de manager, juiz e duque. A sala (Barbican), bem composta, aplaudiu e gritou bravos intensa e longamente. Muitissimo merecidos. Livios Pereyra