2006/06/29

AYRE

A Deutsche Grammophon fez uma forte promoção (há vários meses chegou-me ás mãos uma brochura promocional com o cd) de uma espécie de compilação de canções populares, umas anónimas outras de autores identificados, ás quais são acrescentadas umas "pinceladas", intitulada Ayre, do compositor Osvaldo Golijov. Recentemente esta gravação foi colocada à disposição do público com a transcrição de uma opinião publicada num conhecido jornal dos Estados Unidos que considera indispensável a sua aquisição...

Não por acaso, no mesmo cd, é-nos dada uma nova interpretação das Folk Songs de Berio, sendo apresentada como uma "homenagem a Luciano Berio". Evidentemente que associando as duas obras se pretende associar os dois compositores.

Acho, por isso, que devo exprimir a minha opinião sobre este lançamento da DG, que promete ser o primeiro de uma série de registos com obras de Golijov, segundo se lê na referida brochura.

Ayre pode ser uma compilação de melodias de vários meridianos e latitudes. Não é, seguramente, uma obra musical na qual se possa detectar a "impressão digital" do seu criador. Na realidade, prefiro escutar os originais que ouvir esta "compilação" em que um músico se apropria de culturas musicais distintas que não lhe pertencem nem foi por elas designado como sendo o seu porta-voz "erudito".

Ayre de Golijov está a anos-luz das Folk Songs de Berio porque a intuição e talento de Osvaldo Golijov está a anos-luz da intuição e talento de Berio. O único ponto em comum entre Golijov e Luciano Berio é só e somente este cd. E outros que eventualmente possam associar obras dos dois autores...

Pouco mais há a dizer de um compositor sem rasgos, que usa o riquíssimo legado musical colectivo, onde muitos dos protagonistas ficaram deliberadamente no anonimato, para construir colagens desprovidas de estilo próprio, de inspiração e criatividade. AST















2006/06/20

ARIODANTE

Até 24 de Julho encontra-se em cena, na ENO (English National Opera), a ópera em três actos de George Frederic Haendel, dirigida por Christopher Mouds com encenação de David Alden, restaurada pelo próprio co-adjuvado por Ian Rutherford. As luzes foram originalmente desenhadas por Wolfgang Göbbel.

Moulds conseguiu extrair da orquestra boas dinâmicas e expressivos contrastes, aspectos fundamentais para uma re-interpretação interessante desta música, neste caso feita com instrumentos modernos. O baixo-continuum foi garantido, muito eficazmente, por um cravo, tocado por Moulds, uma teorba, tangida por Dai Miller, e um violoncelo barroco por David Newby.

Esta ópera, que contém inúmeras partes musicais destinadas a serem dançadas, relata-nos uma história banal em que o bem leva melhor sobre o mal, com as devidas peripécias e dramas originados pelos indispensáveis equívocos que são o motor da história. Neste caso, uma inteligente encenação introduziu uma grande mais-valia na trivialidade do libreto. Tratou-se de uma encenação onde o barroco - presente nos candelabros desnivelados (cujos cristais serviram em determinadas cenas para dispersar a luminosidade), no tecto, pintado "à maneira da época", que descia para se transformar num objecto híbrido que tanto podia ser um submarino como um telhado, que também podia ficar desnivelado, simbolizando decadência e drama - foi re-criado com uma leitura moderna, produzindo um grande efeito expressivo. Também as coreografias, numa estética contemporânea, de Michael Keegan-Dolan, repostas por Rachel Lopez de la Nieta, foram outra mais-valia que só um excelente corpo de dança poderia materializar com a grande eficácia que aqui aconteceu. O corpo de baile da ENO recebeu, merecidamente, grandes ovações.

Esta produção da ENO vale por isso tudo, mas também pelo grande desempenho do seu côro que esteve sempre no fosso da orquestra, situação interessante, possibilitada pelo reduzido número de efectivos instrumentais, que potênciou a elevada performance do grupo coral. Um aspecto derivado da encenação que foi trabalhada com base nos solistas, nos bailarinos e em actores não cantates, que se revelou uma excelente opção.

Quanto aos solistas há que destacar de imediato Alice Coote que foi um fabuloso e expressivo Ariodante. Lurcanio, irmão de Ariodante, interpretado por Paul Nilon, esteve igualmente excelente. O rei foi Peter Rose que, no início revelou falhas na colocação mas, com a voz aquecida, demonstrou ser um bom intérprete. Ginevra, filha deste e centro de todo o drama, foi Rebecca Evans que inicialmente revelou agudos ásperos e mal sustentados mas, no decurso da performance, demonstrou conseguir uma voz redonda e bem colocada. No entanto, na minha opinião, faltam-lhe nuances tímbricas que potênciem uma maior expressividade. Polinesso, o mau da fita, foi uma excelente Patricia Bardon, que para além de grande cantora se revelou uma excelente atriz. Finalmente Dalinda, a apaixonada-enganada-usada por Polinesso, foi Sarah Tynan que possui um belo e expressivo timbre. No global foi uma grande produção de uma ópera barroca, utilizando instrumentos modernos estilística e musicalmente bem trabalhados. AST















2006/06/19

SUMMER EXHIBITION 2006

A 238ª edição da Summer Exhibition, na Royal Academy of Arts de Londres, que se encontra aberta a todos (mediante pagamento) até 20 de Agosto, impressiona logo pela colossal escultura de Damien Hirst, intitulada The Virgin Mother. Nesta obra gigantesca, em bronze, uma mulher aparece com as entranhas, de um dos lados, expostas, vendo-se um feto. Obra impressionante, para alguns chocante, fica como imagem de marca desta Summer Exhibition 2006.

No entanto existem obras, em nosso entender, mais interessantes que a espectacular The Virgin Mother.

Anish Kapoor, prosseguindo o seu trabalho de jogo com os sentidos, apresenta Untitled de 2004 e Untitled de 2006. Untitled de 2006, trata-se de um enorme prato suspenso na parede sobre o qual a nossa imagem surge distorcionada, provocando um colapso do nosso domínio das coordenadas sensoriais do espaço. Untitled de 2004, trata-se de uma pequena bola de aluminio onde a nossa imagem surge espelhada na superficie.

No entanto a grande novidade desta edição, em nosso entender, trata-se de Marilène Oliver. Em Show Me How To Float, uma obra genial feita em acrylic iluminada com luz fluorescente, percebe-se um vulto feminino tridimensional que toma forma pelos furos executados nas placas sobrepostas de acrylic. Esta obra ganhou o The London Original Print Fair Prize. Radiant, outra obra fenomenal na qual a criadora utiliza inkjet print, no acrylic, deixa perceber um vulto masculino, numa tridimensionalidade fatiada no interior de um cubo translúcido. O exemplar exposto estava vendido.

Quanto às obras dos alunos da Royal Academy, expostas noutro lugar (entrada livre), devemos destacar as colagens com pintura de Jessica Holmes, que utiliza folhas coladas das listas dos telefones chineses, construindo deste modo grandes superficies, sobre elas pintando blocos floridos, simulando continentes, cujas re-entrancias aparentam coincidir. Noutros casos os blocos pintados encontram-se dispostos simetricamente. As obras expostas de Jessica Holmes encontram-se todas vendidas.

Muitissimo interessantes são as foto-montagens de Liane Lang, onde os corpos das modelos surgem subtilmente corrompidos, pre-anunciando a estaticidez da morte simbolizada pelas esculturas decapitadas onde as modelos se entrelaçam. Pilar Villa














2006/06/18

NIXON IN CHINA

A English National Opera (ENO) está a apresentar esta ópera de John Adams com encenação de Peter Sellers.

Antes de mais devo dizer que não sou exatamente um fã do minimalismo em música. Depois desta nota à-priorística posso passar a comentar a récita a que assisti ontem, 17 de Junho.

Se o minimalismo na "música pura" resulta, invariavelmente, numa "trágica monotonia da repetição" (a expressão é de Freud referindo-se ás patologias), na ópera pode, caso haja intuição, funcionar bem. Só assisti a uma outra ópera minimalista, "O Corvo Negro", se bem me lembro (esta expressão também não é minha como todos sabemos), de Phillip Glass, que foi, para mim, um autêntico embuste. No entanto, não há qualquer pertinência, neste caso, em estabelecer comparações porque se uma foi um embuste, outra, a que trato aqui, é uma obra acabada e conseguida.

Adams conseguiu uma interessante gestão das tensões devido à estrita conexão entre acção e movimento sonoro. Quando me refiro, no minimalismo, a movimento, estou a falar da alteração do quadro, da "paisagem" sonora. E nesta ópera, Adams revelou-se um mestre, mesmo quando parecia que estavamos a resvalar para o "dejá-vu", como referências tangênciais a outras obras, feitas em contextos muito particulares.

Mas Adams teve golpes de genialidade: no encontro entre Nixon e Mao a dobragem das palavras de Mao pelas três secretárias teve um efeito fortíssimo, que remete para a metáfora do "grande mestre", cuja voz ressoa, e não é por acaso que, no acto final, Mao re-aparece a dizer "eu não sou um". Também a figura de Mao, neste encontro, foi tratada de forma genial por Peter Sellars: uma figura em colapso que dizia tratar de filosofia e não de política: "Isso fica aqui para o primeiro", ripostou quando Nixon tentou abordar questões de política internacional. O primeiro (ministro) era Chou En-Lai...

Na grande recepção, sem a presença de Mao, as luzes da sala acenderam-se, gradualmente, fazendo o público sentir-se participante daquele momento da história, em que, primeiro Chou En-Lai, depois Nixon, fizeram declarações de amizade e respeito mútuo. Nixon foi mais longe dizendo: vi a China como um inimigo, afinal enganei-me. Todos nós participamos, retroactivamente, dessa união da diferença, da mesma maneira que todos nós participamos, desta vez como espectadores uma vez que a acção voltou a confinar-se ao palco donde afinal nunca chegou a sair, da percepção de uma ilusão, pela queda e morte de Chou En-Lai e pelo quadro árido em que o último acto se transformou, transformando-se simultaneamente numa subliminar metáfora a toda a política. Aliás a libretista fez questão em realçar a aspiração de Nixon à história. O mesmo Nixon que comparou a sua viagem e estadia na China à ida à Lua... Na verdade foi uma viagem para o incógnito pois, o programa esclarece-nos, quando Nixon iniciou a viagem o encontro com Mao não estava garantido.

Paul Daniel, o condutor, soube compreender bem os "movimentos", a "direccionalidade", do trabalho sonoro de Adams. Em primeiro lugar, devido a ele, esta produção foi uma excelente reposição de uma obra datada mas incontornável da história da música do século XX.


  • A orquestra e côro da ENO esteveram excelentes, uma excelência a que já estou habituado. James Maddalena que foi Nixon quando a ópera estreou, voltou a sê-lo de novo. Adrian Thompson foi o incrível personagem Mao Tse-Tung, revelando-se não só um grande cantor como um grande actor. A figura dramática de Chou En-Lai, tentando conciliar o inconciliável, foi desempenhada por Mark Stone. Henry Kissinger teve igualmente um desempenho notável por Roland Wood, que também apareceu como o vilão (não por acaso...) no "ballet revolucionário" oferecido aos visitantes pela mulher de Mao, personagem terrível desempenhada por Judith Howarth. Finalmente Pat Nixon (a esposa de Nixon) foi desempenhada, com convicção, por Janis Kelly. Falta dizer que o inteligente libreto foi de Alice Goodman, que também escreveu um dos textos do programa, programa este que é dotado de um raro interesse histórico e artístico. O público que enchia o Coliseum de Londres, uma sala dotada de de uma acústica invejável, aplaudiu com vigor esta produção que é, no mínimo, de interesse máximo. Lívios Pereyra











2006/06/15

MOZART IN LONDON

Com um programa baseado nas estadias de Mozart em Londres, Paul McCreesh e os Gabrieli Consort & Players interpretaram obras variadas de Amadeus, incluindo a sinfonia k 16, supostamente a primeira sinfonia, escrita quando Wolfgang tinha oito anos, e a famosa sinfonia 40.

Pelo meio foi tocado o concerto para piano 12, cujo movimento lento se baseia num tema de Johann Christian Bach por quem Mozart nutria profundo respeito, chamando-lhe "o Bach de Londres" , concerto este que teve uma magnifica leitura pelo pianofortista Ronald Brautigam que se revelou um grande artista.

Ao iniciar a segunda parte, a soprano Rosemary Joshua deu-nos uma bela leitura de Ch'io mi scordi di te?, kv 505. A soprano revelou-se uma mozartiana de primeira apanha, conseguindo mobilizar os aplausos entusiastas dos escassos ouvintes que compareceram no barbican de Londres para este evento.

Outras obras de outros compositores foram tocadas mas, finalmente, a bem conhecida sinfonia 40, de Amadeus, teve uma leitura fabulosa, o que deve ser sublinhado uma vez que esta penultima sinfonia de Wolfgang se trata de uma grande e importante obra que marcou o sinfonismo do seu tempo e que costuma ser tocada por todas as orquestras, nomeadamente as que utilizam os instrumentos actuais.

Os Gabrieli revelaram ser grandes artistas e McCreesh revelou ter um conceito inteligente desta obra genial. O contrastante equilibrio das dinamicas, perfeitamente controladas, o diapasao afinado, o desempenho perfeito dos metais, instrumentos que oferecem dificuldades acrescidas por, nestes instrumentos antigos, carecerem de pistoes e terem de ser tocados na base de harmonicos controlados pela intensidade do sopro, tudo foi perfeito (esquecamos as muito pequenas e muito pontuais desafinacoes no naipe dos primeiros violinos), inteligentemente concebido e tocado com "alma". Tivemos pois uma sinfonia 40 do mais elevado valor artistico. Uma noite para recordar. Livios Pereyra














2006/06/14

SHOSTAKOVICH PELA WIEN PHILHARMONIC

Dirigida por Bernard Haitink a orquestra vienese apresentou-se em Londres com uma primeira parte dedicada a Mozart, tendo na segunda sido interpretada a sinfonia 10 do compositor russo.

Vamos por partes, pois recentemente escutamos esta mesma sinfonia pela Orquestra do Concertgebouw, dirigida por Mariss Jansons, o seu titular actual.

O Mozart foi divino, como se costuma dizer. A sinfonia 32, em um andamento, foi interpretada de maneira deliciosa pelo genial agrupamento, na sua forma de orquestra reduzida, o mesmo se passando com o primeiro concerto para flauta que contou com o flautista Wolfgang Schulz, um flautista fabuloso e primeiro do naipe deste agrupamento.

Passemos agora a Shostakovich. A sinfonia 10 trata-se de uma das grandes obras do compositor, sendo simultaneamente uma obra fundamental daquilo que poderemos designar por estetica neo-classica. Trata-se de uma obra com uma estrutura bem mais consistente que aquilo que aparenta. Em termos de motivos deve ser dito que existe o motivo fundado no nome do compositor, recorrente nas suas obras, e existe um outro motivo formado de maneira encriptada sobre o nome de Elmira Nazirova, por quem Shostakovich nutria, no tempo em que criou esta sinfonia, especial afecto.
Diria que a forma como os dois motivos se confrontam a partir do terceiro movimento tem mais de afectos que de mensagem politica, se se pode falar em "mensagens" na obra do compositor. O motivo sobre o nome do compositor apresenta-se como corrosivo, explosivo, por vezes em pesados unissonos nas cordas, enquanto o motivo de Elmira se apresenta como temperado, apaziguador e aparece nas trompas. Este motivo, que surge no andamento lento (Allegretto) cria uma nova dialectica que domina a obra a partir do seu aparecimento, obra que vinha sendo determinada fundamentalmente pelo motivo do nome do compositor. Claro que outras coisas podem existir mas tentar a todo o custo querer ler mensagens subliminares na obra se Shostakovich pode nem ser uma metodologia que valha a pena continuar a explorar, limitando-nos a recepcionar novos dados objectivos, como cartas, notas escritas pelo criador, etc.
Creio que na altura escrevi que Jansons, "especialista" em repertorio da alemanha, seria um chefe-de-orquestra muito pouco consensual, se bem que na arte os consensos se possam dispensar, para dirigir Shostakovich. Depois de ouvir a Wien Philharmonic son batuta de Haitink, devo dizer que, definitivamente e sem colocar em causa a grande qualidade musical de Jansons, a leitura de Haitink foi milhares de vezes mais convincente, mais sentida, mais "profunda" e mais transparente. Claro que a Wien Philharmonic tem uma sonoridade singular mas, estou convicto, que foi a leitura do chefe-de-orquestra que mais contribuiu para esta antinomia na leituras desta mesma sinfonia.
Finalmente, mesmo a melhor orquestra do mundo pode ter falhas: no primeiro surgimento do motivo de Elmira o trompa a custo atacou directo a nota. Num resurgimento mais adiante o ataque delizou meio tom abaixo. Mas que foi isso tendo em conta a grande performance que o mesmo trompa garantiu ao longo de toda aquela genial leitura, feita pela Wien Philharmonic dirigida por Bernard Haitink, desta obra impressionante? Livios Pereyra














2006/06/12

György Ligeti dies on 12 june 2006

On Monday morning, the Austrian-Hungarian composer György Ligeti died in Vienna at the age of 83 after suffering from a serious illness. With him, we have lost one of the greatest composers of the 20th century.
 
György Ligeti was an adventurer in form and expression and a great visionary of contemporary music. His richly varied output takes a special position in its musical quality and uncompromising individuality. Ligeti moved far away from aesthetic trends and methods all his life. He was characterized by fresh and unorthodox ideas, any form of dogmatism was foreign to his nature, his entire oeuvre is marked by radical turning points. Admired and hugely influential in the profession, the sensual accessibility of his music has won the hearts of audiences everywhere. 

in http://www.schott-music.com

2006/06/09

POWDER HER FACE

Trata-se de uma opera composta por um Thomas Ades com 24 anos (o compositor nasceu em 1971 em London). Mas trata-se de uma opera que vai ser uma obra importante entre os trabalhos de uma modernidade que se atravessou do seculo XX para o XXI.

O drama ronda o moderno realismo, com um libreto de Philip Hensher, nascido em 1965, tendo como ocaso a obra de Buchner, Woyzeck, que inspirou o libretto de uma das maiores obras musicais de sempre (a genial opera de Alban Berg com o mesmo nome), Woyzeck este que, talvez por acaso, se apresenta, na forma teatral original, no mesmo local (numa outra sala) onde foi apresentada, na forma de concerto, a opera de Ades.

Trata-se igualmente de uma mulher que uma sociedade machista trucidou. Ali a mulher, uma pobre mulher, foi engolida usada e assimilada pela lei da brutalidade. Da brutalidade que, praticada pelos homens, pode ser horrenda. Woyzec foi o pobre a quem os mais ricos disfrutaram da esposa. Woyzeck vingou-se no lado mais fraco: a mulher que considerava sua. Um triste e estafado conto... Aqui, no libretto de Hensher, tudo gira sobre e com uma mulher que se conduz e conduz os homens. Porque tem dinheiro e nome. Um antagonismo de protagonismos que distingue radicalmente o libreto de Hensher do de Buchner.

Ali, Woyzeck era o quase desamparado, que ficou totalmente desamparado depois de assassinar a sua esposa, membro de uma sociedade de castas onde ele ocupava um lugar na base social e militar. Aqui, a duquesa caiu, estampada, totalmente desamparada, quando lhe faltou o dinheiro. Originalmente ocupava um lugar na sociedade de castas inglesa. Um lugar de topo. Aconteceu com Margaret Williams, Duchess of Argyll, que foi expulsa da suite que ocupava num hotel no ano de 1991. Muito actual...
Os que para mim eram bons eram por mim pagos, constatou a duquesa no final. Seria com ela unicamente a acontecer algo assim? Sabemos que a resposta seria, em todos os casos, na generalidade de todos os casos, negativa. Mas a vertente de sadismo machista, de tremendo e insane sadismo masculino, evidencia-se aqui, muito particularmente e com especial talento, contra uma ex-Don Juan feminina. Talvez porque uma sociedade dirigida e manipulada por homens nunca lhe haveria de perdoar a maneira como usou e usufruiu dos homens. Por vezes pagando-lhes. O julgamento a que a duquesa foi submetida, acusada, entre outras, de condutas sexuais aberrantes ( "fellatio", imagine-se...), foi exemplar deste patetismo morbido a que a agressividade masculina pode conduzir, neste caso, como em muitos outros, sob forma de pretensa defesa da moral e dos bons costumes. Foi no sec XX... Foi igualmente em tonalidade de grande mas contido gozo que o manager do hotel, no final, lhe foi explicando, parco em palavras mas rico em maneirismos vocais, que teria de abandonar o hotel onde residia. Acabou o dinheiro, acabou a estadia. Fatal!

Mas vamos ao trabalho de Ades, criador da obra, que dirigiu o grupo reduzido da London Symphonic Orchestra, ao qual acrescentou um acordeonista que teve um desempenho fabuloso, o mesmo acontecendo com todos os outros instrumentistas. Servindo-se de reminiscencias de estilos musicais bem determinados e genialmente metamorfoseados, Ades conseguiu uma equilibrio dramatico impressionante, tendo produzido uma escrita orquestral de grande mestre. A dualidade solistas/grupo orquestral foi trabalhada de maneira assombrosa, sendo um dos aspectos mais fundamentais desta opera.

Sob batuta do compositor todos os solistas foram extremamente expressivos, muito especialmente Mary Plazas no papel de duquesa. Igualmente Daniel Norman como electricista e mordomo esteve excelente, assim como Valdine Anderson no papel de empregada e Stephen Richardson no de manager, juiz e duque. A sala (Barbican), bem composta, aplaudiu e gritou bravos intensa e longamente. Muitissimo merecidos. Livios Pereyra