Cravos.
Nada mais além de cravos.
Entram personagens, cada uma transportanto a sua cadeira. Sentam-se.
Paragem.
Um levanta-se. Está vestido de preto. Faz uma diagonal de um lento indeciso. Subita mas pausadamente desce o palco. Convida uma espectadora e sai com ela. Outros e outras imitam-o num andamento mais fluente.
Os que ficam começam a retirar-se. Levam as cadeiras.
Resta o homem de preto e gravata. Recita e mimetisa em linguagem gestual.
Grande luminosidade com música nostálgica.
Pina Baush, no seu melhor estilo, fez questão de que se realizasse uma pré-estreia para bailarinos, artistas, imprensa e "outros". O Teatro Municipal de São Luiz (Lisboa), de bom grado lhe fez a vontade. Os bilhetes para os espectáculos da coreógrafa mais famosa do mundo estavam esgotados faziam já alguns meses.
Durante o espectáculo este público de "habitués", "entendido" e caloroso, não se poupou a mostras do seu contentamento. Como seria de esperar... Pina Baush, como todos os grandes criadores, repetem-se sempre. Na inovadora genialidade dessa repetição estará, por acaso, o rasgo que os impõe à história.
Detenhamo-nos porque nos interestícios da repetição emerge, muito frequentemente, a diferencialidade.
Olhando bem vemos a imagem do poder que coage e goza (em pleno sentido lacaniano) com o acto de pura maldade, entrar em processos sucessivos de auto-destruição. Estamos na segunda tópica freudiana. Nesse obscuro "ça" que já não se opõe ao "moi". É um discurso sobre a "pura maldade" enquanto sublimação, sabendo-se ser este um dos aspectos mais obscuros e paradoxais do último Freud.
Depois dos "gorilas" se atirarem, num acto de espectacularidade suicidária, sobre as caixas que tão bem enfileiraram, destruindo-as, Pina Baush tinha delimitado as margens da sua poética.
Tudo e nada se passou entretanto com a coação do poder, seja ele qual fôr, ridiculamente omnipresente, ridiculamente ridicularizada, que vai de parceria com o acto de compulsão repetitiva (a trágica monotonia da repetição, segundo Freud).
O segundo momento chave foi a sucessão de quedas, impressionantes quedas, impressionante sequência, sobre uma mesa, oferecendo o seu ritual auto-destrutivo, como se de uma refeição se tratasse, a uma mulher. Que, sem sucesso, lhes ofereceu tudo para que se detivessem. Se o sadismo faz parte do exercício de um poder que pode ser sempre destruído e aniquilado sem se sair sequer (talvez por isso mesmo) do mesmo "campo pulsional"; já o masoquismo é dificil, insuportavelmente dificil de conceber - muito mais de observar - pois implica, em última instância, um "outro" que se escapa, nulificando um poder que não teve o poder de o deter, nem pela sedução. Há algo de fundamental, nesta incomodidade, quando esse masoquismo é exibido. Um retorno em espelho de uma pulsão elementar?
Já só resta o delírio. A esquizofrenia como escape, aqui na vertente do uso da substância. Do químico tão natural quanto as maçãs...
Por fim, face à atrocidade da auto-agressão exibida pelos carrascos que não desaparecem com subtileza, que insistem em impôr a sua mutilação numa derradeira tentativa de se esquivarem à verdadeira morte e afirmarem o seu poder, só queda o mergulho na vulgaridade. Vulgaridade da inconsistente foto de família feliz. Vulgaridade da motivação que os (nos) levou a ser bailarinos (as), artistas, ou qualquer coisa. AST