Mais de vinte anos após a estreia de Nelken apresentado em Portugal na passada semana, Pina Baush traz-nos um trabalho de 2004, sempre com cenografia de Peter Pabst. É importante realçar esta parceria, longa, quase eterna parceria entre a coreógrafa e o cenarista, porque no curto espaço de uma semana o público português pôde conhecer dois Pabst e duas Pina.
A conexão entre os dois espectáculos existe certamente e até de forma evidente. Mas a ruptura do "modo-de-fazer", da composição, supera, em meu entender, as continuidades estético-conceptuais.
Não estranhamente, onde Pina esteve melhor foi exatamente nessas continuidades. A cena dos homens de fato que corriam desnorteados com gravatas na mão e outros que transportavam no ar mulheres que gritavam - sequência que poderia ter finalizado um espectáculo que Pina preferiu arrastar mais meia hora ao som de ritmos brasileiros que parecem constituir uma obcessão para a coreógrafa - foi uma cena forte, com rasgos do génio "piniano". Já a opção do apêndice, em forma de côda, com que o espectáculo terminou, parece remeter-nos para uma leitura fácil e vendável: a "terra", simbolizada pelos seus ritmos, impõe-se ao drama das relações sociais. Estranho, vindo da criadora de Nelken. De resto sabemos que infelizmente não acontece assim.
Não esqueçamos a primeira parte que poderá servir de manual negativo ás (aos) coreógrafas (os): alguém sentiu a necessidade que impulsiona o emergir de uma cena, de uma sequência, a partir da que a precede? Não ficou um estranha sensação de colagem, por vezes forçada? Qual a pertinência dos "gags" que faziam rir o público? Em Nelken faziam parte da moldura que toldava de ridículo, ou de dramático, ou de patético, ou tudo isso junto, isto ou aquilo. E aqui? Aqui onde a terra e os seus ritmos vencem o drama das mulheres e dos homens que a destroem? Aqui onde o céu - só presente pela neve que cai que pode revestir-se, ainda que a coreógrafa não tivesse pensado nisso, como metáfora de uma "caída inaugural" que marca uma condição - nos aparece retratado em longas músicas "secantes" com movimentos que se aproximam de um idílico piroso, para já não falar dos figurinos?
Decididamente há duas Pinas. E dois Pabsts, ainda que este seja um complemento, indispensável. E certamente insubstituível. Esta Pina, apesar das continuidades e da repetição que caracteriza todo o grande criador, já não é a Pina dos Cravos. Tirando isto, que é em meu entender o fundamental que deve ser escrito, tenho de dizer que a segunda parte tem momentos em que o trabalho em profundidade adquire uma potenciação impressionante acentuada pela caída da neve. Por exemplo, a sequência em que a rapariga se afasta da boca da cena e o bailarino faz aproximações, em que ela se continua a assustar (e não me parece que haja relação profunda com a sequência das quedas de auto-mutilação em Nelken), é fabulosa. A já referida sequência que em meu entender deveria ter finalizado esta criação (antes do "apêndice final"), situa-se no melhor estilo e espiritualidade "pinianas". A sequência em que o jovem retira ao ancião as vestes tradicionais, substituindo-as por indumentária ocidental é simbólica e tem impacto. A sequência seguinte, a do solo do ancião já vestido à ocidental, foi interessante. O transporte do ancião pela jovem e depois o inverso: seguramente Pina terá tido conhecimento da tradição ancestral do transporte dos anciãos, pelos filhos varões, para morrerem na montanha, aqui duplamente invertida. Tratada num lapso, pois tratou-se de uma curtíssima cena entre outros acontecimentos. As sequências "terra" da primeira parte, ritmadas e com um trabalho interessantíssimo de chão, opostas e na continuidade das "cenas idílicas" (céu...) com "música seca". A própria cenografia, que no início "soava" a kitsch (uma barbatana de baleia...), funcionou: no princípio era barbatana, depois poderia ser árvore ou qualquer coisa.
Enfim, um espectáculo com momentos (muito) belos mas do qual me escapou o "conceito". Obrigado à Pina Baush por nos ter oferecido duas ante-estreias. Parabéns ao Teatro Municipal de São Luiz, em Lisboa, por esta inicitiva e por outras que se avizinham, das quais trataremos em devido tempo. AST